O homem que queria ser Clarice

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Este homem que queria ser Clarice Lispector era eu. Não o desejo de me transformar naquela pessoa, mas de escrever igual a ela. A coisa já rolava naturalmente: eu ficava tentando fazer textos com significados intensos, reflexões de sentimentos, fuçando o estilo introspectivo, querendo expor coisas íntimas via incógnitas. Ia para o papel, apenas, macaqueação barata.

Eu plagiava Clarice, na adolescência. Leitor encantado, quando eu ia escrever, queria ser o narrador que ela usava nos seus textos herméticos, que me obrigavam a reflexões. A sua escrita é tão forte, única e surpreendente, que quando eu menos esperava, estava a imitá-la. Inclusive eu preciso dizer, antes de continuar a crônica, que a primeira frase deste texto é um plágio da pior espécie. (Desculpem, foi inevitável).

Clarice tem um livro para crianças cujo título é: A mulher que matou os peixes. O livro começa exatamente assim: Esta mulher que matou os peixes fui eu. (Vejam: mudei somente algumas palavras kkkkk). Feita a confissão, apedrejem-me. Atire a primeira pedra o aspirante a escritor que, na adolescência, nunca quis escrever igual a Clarice. É como se a grande escritora cujo nascimento faz 100 anos, tivesse uma rebeldia no seu modo de dizer as coisas que seduz os jovens. (Por isso, Clarice será sempre atual).

Tentando imitá-la eu dava respostas aos meus sentimentos existencialistas. Entrei em contato com os livros dela no segundo grau. (Segundo grau: era assim que se chamava o Ensino Médio de minha época). Comecei lendo nada mais nada menos que Perto do Coração Selvagem. Joana, a personagem da história, é vocacionada para o mal. E aquilo mexeu com a órbita dos meus satélites.

Vamos fazer um comparativo para se ter uma noção do efeito que aquilo provocou em mim: se hoje existe o pancadão na música, Perto do Coração Selvagem (da Vida) foi a mesma coisa, para mim, na literatura. E tudo estava só começando: para acompanhar os meus amigos “cabeça”, foi uma obrigação ler A Paixão Segundo G.H. (Passo seguinte, comprei um exemplar). A linguagem era tão diferente de tudo o que tinha lido que eu pensei: esse livro dá para mim não.

Pirei de vez, na literatura dela, aos 17. Aquilo era areia demais para meu caminhãozinho. Só que eu não poderia passar recibo de fragilidade intelectual. (Resultado: tive que fazer várias viagens com este meu caminhãozinho para transportar aquela areia toda). Li e reli. É o livro da barata. GH vai fazer uma faxina no armário, encontra o inseto e termina por esmagá-lo. Sabe o que a personagem faz? Come a massa pastosa e branca da barata morta. Puta merda!  Fiquei enjoado com aquilo, Clarice não tinha pena de mim, era punk. (Acho que gostei de barata kkkk).

É tanto que quando fui ler Água Viva e Um Sopro de Vida já estava íntimo da linguagem intimista e psicológica daquela bruxa. Li A Legião Estrangeira, A Bela e a Fera, O Livro dos Prazeres, A Via Crucis do Corpo, A Cidade Sitiada. Nordestino, me vi em Macabéa de A Hora da Estrela. Odiei A Maçã no Escuro. (Minha capacidade de compreensão pifou).

Só podia dar naquilo aos 18, 19 anos: em tudo o que eu ia escrever, tinha que buscar o efeito meio místico das palavras, uma narrativa cabalística, metafórica e quem sabe até um arremedo metafísico para dizer as coisas mais simples. (Ainda bem que eu tive discernimento crítico e não restou nada daquilo que escrevi na época).

A verdade é que eu conseguia ser ridículo e não passava disso. Eu era, portanto, a Clarice Lispector dos pobres de espírito. Levei anos para me curar daquela síndrome. Você me pergunta: foi fácil fazer o exorcismo? Difícil pra Dedéu. E só me livrei dela quando a troquei por outro bruxo: descobri o português José Saramago , lendo Memorial do Convento e Jangada de Pedra. (Começou outro problema. Que, depois, eu conto).

Fonte: Revista Rubem

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