Celso Marconi: Macunaíma – Livro, filme e outros meios

Talvez Mário de Andrade tenha mostrado o “caráter” do brasileiro melhor do que Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre – e isso contando estórias de um herói sem “caráter”

Desde o ano passado, estou lendo a biografia de Mário de Andrade, escrita por Jason Tércio, que foi lançada com o título Em Busca da Alma Brasileira. Há muito tempo que Mário é um personagem central dentro do meu panorama cultural, mas foi com o movimento tropicalista que certamente me aproximei dele. Sempre achei que meu amigo Jomard gostava mais de Oswald, e eu, embora não declarasse, tinha preferência pelos dois, mas com uma certa tendência para Mário.

Já li 60% da biografia e, esta semana, me deu vontade de reler Macunaíma. Nos últimos dois dias, isso aconteceu. Já estamos na década 20 do século 21, e daqui a pouco teremos os cem anos do livro do Mário que nos apresenta a lenda criada na Amazônia.

Sempre fui uma pessoa muito mais influenciada pelo filme Macunaíma do que pelo livro, e só li o livro depois que vi o filme. Confesso. E mesmo hoje, depois dessa revisão do romance (talvez nem seja totalmente correto chamar o trabalho de Mário de romance, como se não o chamasse assim fosse diminuí-lo), continuo achando que certamente uma das melhores adaptações de obra literária para cinema no Brasil seja essa, de Joaquim Pedro.

O livro de Mário não só conta a estória do mito Macunaíma, mas ao mesmo tempo apresenta toda a estrutura da nossa cultura, enquanto o filme é mais direto no contar a estória, como é comum na arte cinematográfica. Joaquim Pedro, embora tenha morrido cedo, tem uma excelente filmografia, mas foi Macunaíma que o tornou um dos mais conhecidos cineastas do Cinema Novo.

E não se pode falar no valor do filme sem se referir ao excelente elenco escolhido a partir de Grande Otelo, que viveu o nascimento e os primeiros anos do herói e de forma genial. Ele é secundado por Paulo José, que foi a mãe de Macunaíma e o próprio personagem enquanto figura branca. Milton Gonçalves, o irmão bobo de Macunaíma Jiguê, e Rodolfo Arena, o irmão feiticeiro Maanape. A grande Dina Sfat, que viveu Ci, a mulher forte guerreira. E ainda o grande Jardel Filho, que interpretou o gigante Piaimã Venceslau Pietro Pietra.

Se olharmos a estrutura narrativa, tanto do livro quanto do filme, encontraremos um caminho tradicional na forma de se contar uma estória. Tanto Mário quanto Joaquim utilizam a maneira tradicional de contar o começo, depois o meio e, por fim, o final da estória. Eles não rompem com esse esquema como fizeram outros, como James Joyce e Glauber Rocha. É na estrutura interna, então, que temos toda a abertura formal, tanto de um quanto do outro Macunaíma. É o personagem que é revolucionário. E daí que venha me parece uma aproximação muito grande entre livro e filme, embora tanta diferença.

Nos prefácios que escreveu para a edição do texto, Mário de Andrade procura fazer com que o leitor não se espante com todas aquelas estórias dizendo que são simples brincadeiras. Nessa atual biografia de Mário, está bem claro como ele foi uma pessoa que sentia na sua vida a pressão de uma família burguesa e tradicional, embora não fossem ricos, mas remediados. O que penso é que seu espírito de grande artista conseguiu romper realmente e conseguiu deixar uma obra fenomenal como Macunaíma.

Talvez Mário tenha mostrado o “caráter” do brasileiro melhor do que Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre – e isso contando estórias de um herói sem “caráter”. É notável o embaralhado que o escritor usa para mostrar que o herói não é do Amazonas, não é do Nordeste, não é de São Paulo ou Rio de Janeiro, e nem do Paraná ou do Rio Grande do Sul. É um herói brasileiro. E nem Gilberto chegou a demonstrar a unidade que havia nesse país como o fez Mário com o seu ‘herói sem caráter’. Talvez o aspecto mais forte do livro seja justamente esse embaralhado. E o próprio artista, se tinha consciência do que estava dizendo, preferiu o esconder para os seus primeiros leitores.

Jason revelou, no título da biografia, que escreveu de Mário o que ele pretendia com sua vida – que era descobrir a alma, a nossa alma que nos fazia um povo com uma nacionalidade.

Capa da primeira edição de Macunaíma, disponível na Biblioteca Nacional

Claro que Mário escreveu em seis dias no sítio em que passava férias em Araraquara, em São Paulo, o seu livro, mas o que ele escreveu não correspondia simplesmente a seis dias de trabalho – mas, sim, a todos os anos de maturação de sua vida vivida em busca de conhecer este país. Nas viagens que fez em Minas Gerais, na Amazônia, no Nordeste, assim foi criando um pensamento que se estruturou no que conheceu através das viagens e dos contatos com seus amigos.

Mário não quis ir à Europa, viajar a Paris. Preferiu viajar ao nosso país e mostrar quem ele era/é. Certamente, quando o livro completar cem anos de escrito, será referendado como a maior criação artística do século 20 em literatura. E será o nosso retrato. Seja em livro, em filme, em dança, em peça de teatro, em escola de samba. Mesmo que seja também uma Antologia do Folclore Brasileiro, como disse Mário.

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