André Barcinski: Woody Allen através só dos fatos, por favor

Discussão sobre o diretor pode desestimular muita gente a ler a autobiografia e, assim, perder a chance de conhecer um livro fascinante, revelador e lindamente escrito. Além de muito, mas muito engraçado.

Nos últimos tempos, não tem sido fácil escrever qualquer coisa sobre Woody Allen. A menor menção ao nome do cineasta é geralmente recebida com pedradas e xingamentos. O motivo, claro, é a acusação de abuso sexual feita por Dylan Farrow, filha adotiva de Woody e da atriz Mia Farrow.

O tema é gravíssimo, e acho que qualquer acusação de abuso sexual precisa ser investigada com a máxima dedicação. O fato é que a acusação contra Woody Allen foi investigada com a máxima dedicação. Não uma, mas duas vezes.

O caso começou em 1992: Woody e Mia, que eram namorados, se separaram depois que ele iniciou um romance com Soon-Yi Previn, então com 22 anos de idade, filha adotiva de Mia e do pianista e maestro americano André Previn.

Em agosto do mesmo ano, Woody foi visitar os dois filhos adotivos que tinha com Mia – a menina Dylan, de 7 anos, e o menino Moses, de 12 – na casa de campo de Mia, em Connecticut. Mia não estava, mas a casa estava cheia de empregados e de crianças (Mia tinha vários filhos, biológicos e adotados). Segundo Mia, depois da visita, Dylan teria dito que Woody abusara sexualmente dela.

Mia gravou um depoimento da criança e entregou as fitas à polícia. Iniciaram-se, então, as investigações: a primeira, realizada por uma unidade especial de investigação de abusos de crianças do estado de Connecticut, durou seis meses, e concluiu: “Dylan não foi abusada sexualmente por Allen”.

A segunda foi ainda mais extensa (14 meses) e envolveu profissionais dos Serviços Sociais do Estado de Nova York. Novamente foram interrogados todos os presentes, incluindo Woody, que passou por um detector de mentiras. Conclusão: “Não foi encontrada nenhuma prova credível de que a criança (…) tenha sido abusada ou maltratada”.

Os investigadores aventaram duas hipóteses para explicar as acusações de Dylan. A primeira: “As declarações não eram verdadeiras, mas foram inventadas por uma criança emocionalmente vulnerável”; e a segunda: “Dylan foi treinada ou influenciada pela mãe”. Woody Allen nunca foi acusado pelo suposto abuso, porque não havia provas para justificar a acusação (quem quiser mais detalhes do processo deve ler este artigo da jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho).

Corta para 2018: Dylan, agora uma mulher de 32 anos, dá entrevista a uma emissora de TV norte-americana em que reitera as acusações contra Woody. Se em 1992 as acusações foram rechaçadas pelos investigadores e não chegaram sequer aos tribunais, em 2018 ecoaram fortemente nas redes sociais.

Mesmo sem provas, a “justiça” da Internet rapidamente condenou o cineasta: seus dois últimos filmes não encontraram distribuidores nos Estados Unidos, e sua autobiografia, Apropos of Nothing, teve o lançamento cancelado pela editora Hachette depois de protestos da família Farrow e de funcionários da editora. O livro acabou lançado, semanas depois, por outra editora, a Arcade.

É uma pena que toda discussão sobre Woody Allen tenha que envolver o assunto do suposto abuso sexual, porque isso pode desestimular muita gente a ler a autobiografia e, assim, perder a chance de conhecer um livro fascinante, revelador e lindamente escrito. Além de muito, mas muito engraçado.

Apropos of Nothing é daqueles livros que você torce para não acabar. Allen conta com riqueza de detalhes sua infância, passada num bairro de classe média do Brooklyn. A mãe, Nettie, era o modelo da mãe judia superprotetora, e o pai, Martin, um trambiqueiro metido até com a Máfia: “Meu pai comprou uma pequena mercearia falida na Avenida Flatbush e, com planejamento e trabalho duro, em pouco tempo conseguiu dobrar os prejuízos”.

Fãs da comédia inteligente e sardônica de Allen, acostumados a vê-lo como um típico intelectual nova-iorquino, vão se surpreender com as revelações de que ele preferia mil vezes um jogo de beisebol a uma peça de teatro. Gostava de matar aula em Manhattan para comer cachorro-quente e ver musicais da Metro no cinema, e sonhava em seguir a carreira de mágico: “Para mim, a leitura sempre competia com esportes, filmes, jazz, truques de cartas, e o próprio ato de não ler, porque as letras eram pequenas demais (…) Você ficaria chocado ao saber o que eu não sei e não li ou não assisti”.

Fã de Bob Hope e Groucho Marx, Woody entrou no humor por acaso, quando percebeu que poderia ganhar uma boa grana escrevendo piadas para outros comediantes. Dali foi um pulo para a comédia “stand up” e, depois, para o cinema.

Apropos of Nothing é uma sucessão de capítulos engraçadíssimos e reveladores, infelizmente interrompidos de vez em quando por assuntos trágicos como as brigas com Mia Farrow e as acusações de abuso sexual. O livro deve ser lançado no Brasil no segundo semestre pela Editora Globo. Não deixe de ler.

Publicado originalmente no UOL

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