Nicolelis: que os agentes de saúde “quebrem a transmissão do vírus”

Coordenador do Comitê Científico de combate ao coronavírus do Consórcio Nordeste debateu com o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta

O coordenador voluntário do Comitê Científico de combate ao coronavírus do Consórcio Nordeste, Miguel Nicolelis, afirmou, na segunda-feira (27), em debate com o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no Jornal da Manhã, da TV Bahia, que é necessário “quebrar a transmissão do coronavírus indo para o ataque, nas casas, nos bairros e nos locais de trabalho, onde estão os infectados” (Assista aqui a entrevista).

“Atacar o vírus onde ele nos ataca. Tirar a grande vantagem do sistema de saúde familiar que nós temos pelo Brasil no SUS e ir na casa das pessoas com o que nós chamamos de brigadas emergenciais de saúde para quebrar a transmissão do vírus onde ele se transmite, porque a gente não quebra a transmissão do vírus em leitos de UTI e dos hospitais”, disse o cientista.

O ex-ministro Mandetta concordou plenamente com Nicolelis. “Essa via de atenção primária, ela não pode ser colocada naquele momento (no início da pandemia) porque não havia equipamentos de proteção individual”, explicou, chamando a atenção para a justeza do que disse agora o professor Nicolelis.

“Agentes comunitários da saúde da Bahia, é fundamental a visita domiciliar e a quebra da cadeia de transmissão”, destacou Mandetta.

Leia a íntegra da entrevista

Repórter: Dr. Mandetta, o senhor disse que depois dessa fase haverá a tendência de pequenos surtos até que surja uma vacina ou tratamentos mais eficazes. Nós não corremos o risco desses pequenos surtos se transformarem numa segunda onda da pandemia?

Mandetta: São muitas dúvidas, essa é uma delas. A primeira onda, como eles chamam, ela vai se elevando lentamente e repentinamente ela sobe de forma acelerada. Depois ela atinge um máximo de casos. O Brasil atingiu esse máximo de casos. No dia 10 de maio, nós chegamos nos 10 mil óbitos. No dia 20 de julho, que foi exatamente 70 dias depois, nós chegamos a 80 mil óbitos. Nós fizemos uma média de mil óbitos por dia por 70 dias consecutivos. E estamos ainda mantendo essa média. Lá em cima extremamente alta. Estamos num platô muito ruim porque as pessoas costumam se brutalizar, ‘são só 1,2 mil mortos’, dizem. Não, esse número são cinco Boeings caindo na nossa cabeça todos os dias. Uma vida interessa. Depois que passa esse platô, a tendência é cair, como está caindo na cidade de São Paulo e na cidade do Rio. Depois dessa queda, como existem pessoas susceptíveis, nós vamos ver pequenas epidemias em bairros e localidades. Se isso vai se tornar uma segunda onda, há ainda muita discussão. Se tem imunidade cruzada, ou seja, se eu peguei um coronavírus há dez ou vinte anos atrás, de outra cepa, mas parente dele, isso me dá alguma imunidade? Tem gente que acha que sim, tem gente que acha que não. O meu sistema genético me dá alguma proteção? Tem gente que acha que sim, tem gente que acha que não. As pesquisas estão andando. Agora, esperto, inteligente e coerente nessa história é quem souber administrar bem essa velocidade de transmissão, garantir bem o atendimento das pessoas que precisarem e pegar o tempo da ciência que vem aí com três grandes avenidas de pesquisa. Uma delas vem da Austrália, que liberou semana passada um teste eficiente, com resultado em 20 minutos, feito na bancada pelo próprio profissional, com 100% de assertividade positiva ou negativa. Isso pode ser um enorme instrumento para as empresas e para as sociedades. Segundo, medicamento, retrovirais, tem coisa vindo por aí. E o terceiro, a vacina, essa sim a maneira mais elegante e inteligente que a Humanidade tem para enfrentar o capítulo vírus. Então, vamos administrar. Você que tem pai, que tem mãe e avós , que são os mais vulneráveis, que moram em casas de muita aglomeração, procurem fazer higiene das mãos, isso ajuda demais na prevenção. Usar uma máscara sempre que estiver dialogando com uma pessoa. Fazer o distanciamento, se não dá para fazer isolamento, procure ficar a dois metros quando você for se relacionar com outras pessoas. Fazer o máximo possível de prevenção porque uma pessoa que se contamina, se ela fica sem fazer as medidas de prevenção, ela contamina 4, 5 e até 6 pessoas. Essas medidas são fundamentais até que a ciência possa avançar.

Nicolelis: Concordo plenamente com o ex-ministro, mas eu tenho a sugestão, que o comitê fez, de ir para o ataque. Atacar o vírus onde ele nos ataca. Tirar a grande vantagem do sistema de saúde familiar que nós temos pelo Brasil no SUS e ir na casa das pessoas com o que nós chamamos de brigadas emergenciais de saúde para quebrar a transmissão do vírus onde ele se transmite, porque a gente não quebra a transmissão do vírus em leitos de UTI e dos hospitais. Desde o grande Oswaldo Cruz, desde de 1904, a gente sabe que a gente tem que quebrar o vírus dentro das casa das pessoas, nos lugares de trabalho, nos bairros, nas vizinhanças, nas periferias das capitais e dos municípios do interior. Então, é muito importante que os agentes de saúde, que os médicos da família, tenham a chance de ir de encontro, nós temos um exército no Brasil, o ministro Mandetta conhece muito bem essa estrutura. Nós temos um exército de profissionais de primeira categoria que podem ir a campo e quebrar a transmissão do vírus que é vital. Nós não podemos mais ficar na defesa. Nós temos que ir para o ataque. É vital num país desse tamanho que a gente vá de encontro ao vírus.

Mandetta: Concordo plenamente. Essa via de atenção primária, ela não pode ser colocada naquele momento porque não havia equipamentos de proteção individual, mas chamo aqui a atenção e reforço o que o professor Nicolelis falou. Agentes comunitários da saúde da Bahia, é fundamental a visita domiciliar e a quebra da cadeia de transmissão. Isso é uma missão que eu sei que vocês conseguem fazer com toda a articulação que o sistema de saúde do estado está fazendo. É fundamental o que disse o professor. Está corretíssimo.

Repórter: Dr. Nicolelis, o senhor já disse que essa pandemia é uma guerra biológica. Conhecendo bem a realidade do Nordeste, seus números, inclusive da Bahia, o senhor diria que nós estamos perto do fim desta guerra ou ainda falta muito?

Nicolelis: A análise dos dados que nós estamos fazendo diariamente ainda mostra que falta bastante tempo. Nós não vemos claramente um fim. Existe um certo platô nos últimos dias, mas eu tenho olhado a evolução, tanto nos casos de Salvador como no interior, houve uma interiorização que já está estabelecida na Bahia. Nós estamos vendo um número crescente de casos em todas as regiões do estado e, em Salvador, nós continuamos vendo um crescimento nos últimos 14 dias a ponto da cidade ter tido o terceiro maior crescimento nas capitais nessas últimas duas semanas. Então, como nós estamos vendo nos EUA, é muito difícil, quando você chega num platô desses, prever como as coisas vão evoluir. Nos EUA houve uma grande explosão depois de três meses de platô, e aqui, nós no Brasil, e no caso específico da Bahia, nós ainda não temos uma definição clara do que vai acontecer nas próximas semanas.

Repórter: Dr. Mandetta, Eu queria ouvir sobre a declaração que o diretor executivo da OMS, Michael Ryan, deu sobre a possibilidade das pessoas começarem a ser vacinadas a partir do primeiro semestre do ano que vem. Sabemos que existe uma hierarquização econômica na distribuição dessas vacinas, então eu queria saber qual é a expectativa que nós podemos ter em relação à chegada e a distribuição equilibrada dessa vacina em todo o país?

Mandetta: Michael Ryan está com a posição mais correta, do ponto de vista de que, se a fase três se confirmar – ela terá seus números consolidados até novembro ou dezembro – isso com todas as agências fazendo o que a gente chama de método rápido, depois isso tem que ir para a indústria, e a indústria, ao colocar a sua escala de produção, o mundo consegue produzir mais ou menos dois bilhões e meio de doses, nós somos 8,5 bilhões da habitantes no mundo. Então, o Brasil tinha que estar agora preparando as suas estruturas de produção, dentro dos seus laboratórios, Butantan, Fiocruz e, inclusive, chamando parceiros da iniciativa privada e colocando para eles que tendo a certificação da Anvisa (Fase 3) e podendo produzir, eu preciso ter acesso à vacina, ou melhor, eu irei produzir aqui dentro do Brasil e garantir a vacina para a América do Sul e para os países de língua portuguesa da África. Mas, tem que se preparar para um momento de produção. Acho que no primeiro semestre do ano, sendo todo mundo otimista, dando tudo certo, essa vacina chega nas nossas mãos.

Repórter: Dr. Nicolelis. Sobre a reabertura e da retomada das atividades do comércio em Salvador, os shopping centers, centros comerciais, como o senhor percebe esse movimento de retomada no contexto, no estágio em que nós estamos aqui na capital dos baianos?

Nicolelis: A Universidade de Oxford publicou um relatório duas semanas atrás, que, inclusive, nós citamos no nosso boletim, mostrando que no Brasil as aberturas estavam ocorrendo, principalmente em São Paulo e no Rio, em condições adversas do ponto de vista epidemiológico para que elas pudessem ser feitas na velocidade que estavam. E nós no comitê fizemos essa mesma análise para todo o Nordeste e tomamos uma posição muito clara de que é muito importante ter critérios epidemiológicos objetivos, quantitativos, que são conhecidos por todos, nas decisões sobre aberturas de comércio e outros tipos de atividades econômicas. E neste momento ainda é uma situação bem delicada. Então, a nossa posição é de cautela como tem que ser porque nós somos cientistas e somos técnicos que analisam os dados disponíveis. Os gestores lidam com uma variedade outra de parâmetros que não são disponibilizados a nós porque nós não operamos e não temos conhecimento de outros parâmetros de funcionamento dos estados e das cidades. Mas, para nós, do ponto de vista científico, ainda é o momento de manter o isolamento social e tentar segurar toda essa transmissão, ou quebrá-la de forma maior possível a espera da vacina, a espera da solução que está sendo testada na fase três e que nós esperamos que as quatro vacinas que estão chegando nessa fase possam estar disponíveis no semestre que vem. Então, a abertura, para nós ainda é algo que não deveria estar acontecendo na velocidade que está sendo proposta aqui no Brasil.

Repórter: Dr Mandetta, no começo da pandemia o senhor falava sobre a importância de nós brasileiros cuidarmos uns dos outros, dos nossos pais, dos nosso avós, porque teríamos vinte semanas muito difíceis pela frente, e ainda estamos neste período, qual é sua avaliação sobre o estágio atual da pandemia em todo o país, considerando inclusive que existem diversas pandemias dentro dessa pandemia, a depender da região, do estado?

Mandetta: O momento é assimétrico. O Brasil é um continente. Nós tivemos em Manaus uma contaminação em bloco da cidade. Manaus foi a primeira grande epidemia brasileira. Ela entrou, diferente das outras cidades que ela entrou pelas classes médias e alta, em Manaus ela entrou pela vila operária, porque a Zona Franca de Manaus tem muito trânsito internacional. Então, entrou pela massa de trabalhadores e a cidade não estava preparada e foi muito ruim. Houve morte por desassistência, houve situações em que o sistema claramente não estava preparado a ponto do sistema funerário entrar em colapso. Depois nós vimos outros locais equilibrando e, quando chega em 20% de anticorpos, aparentemente tende a um equilíbrio. Então, esses inquéritos epidemiológicos que estavam sendo feitos atá a semana passada pela Universidade Federal de Pelotas eles ajudaram muito como guia. E eu acho que inquéritos epidemiológicos podem ajudar também a Bahia. Temos um país sem a participação do Ministério da Saúde, que se ausentou, deixando a cargo dos estados e dos municípios, muitas vezes sem o empoderamento técnico necessário para essas decisões que envolvem comércio, abertura e com uma pressão muito grande da sociedade. Vejo que as sociedades brasileiras tomam decisões diferentes em momentos diferentes, algumas com critérios técnicos outras com critérios mais políticos, mas é muito diferente uma da outra.

Repórter: A pandemia tem uma evolução. Dá para prever o que vai acontecer?

Nicolelis: A pandemia de 1918, eu tenho estudado os livros de John Berry, americano que é o maior especialista na história das pandemias da Humanidade, e ele mostra que em vários momentos em Nova Iorque e na Filadelfia, se achava que se tinha atingido um platô e que as coisas iam melhorar. E, infelizmente, as coisas explodiram de novo. Porque começaram a ter aberturas e contatos humanos num momento crítico. Esse é um drama. Nós conhecemos bem a história das pandemias, mas esse é um vírus novo. É um vírus que nós estamos tomando contato com ele nos últimos 5 ou 6 meses. Então, a dinâmica desse vírus é muito peculiar. E nós vimos nos lugares que se deram muito bem como a China e a Alemanha, pequenos movimentos de abertura levaram a novos surtos. Novos surtos podem levar a novas ondas. No caso brasileiro, a interiorização do vírus, que já se completou, pode levar ao que nós chamamos de um efeito bumerangue. A medida que os casos no interior crescem e aparecem casos complexos, mais graves, esses casos complexos migram de volta para as capitais e esse é o efeito bumerangue, com nova sobrecarga hospitalar das capitais com casos vindos do interior. Temos um efeito interior capital e capital interior. Temos que evitar isso, quebrando a transmissão do vírus. A dinâmica num país como o Brasil com tempos diferentes, a malha rodoviária extensa que o Brasil tem que permite o espalhamento do vírus rapidamente da costa para o interior e entre regiões, todas essas variáveis transformam o manejo desse vírus num problema extremamente complexo num país como o nosso.

Mandetta: A mensagem dúbia da União. Sua ausência. O estímulo ás aglomerações atrapalharam o trabalho de combate à pandemia. Outro problema foi o Brasil não ter mais uma indústria de insumos em saúde. Nós vamos ter que reconstruí-la. A indústria brasileira não conseguiu atender a demanda nem de máscaras. Ficamos totalmente dependentes das importações. Quando os mercados internacionais, particularmente da China, fechou, nós ficamos totalmente desabastecidos, inclusive dos casos de rotina. Por isso o isolamento inicial, para proteger o sistema até que a China voltasse a vender seus produtos.

Fonte: TV Bahia, via Hora do Povo

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