Fim anunciado das sanções ao Irã não encerra a bravata dos EUA

O presidente Hassan Rouhani anunciou a abertura de uma “página dourada” na história das relações entre o Irã e o mundo, tamanha a importância do acordo nuclear alcançado no ano passado entre o país e o Grupo P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a Alemanha). Mas os desafios no enfrentamento à ingerência estadunidense e também europeia ainda não estão superados nesta complexa conjuntura internacional.

Por Moara Crivelente*

G5+1 e Irã - Jason DeCrow/AP

A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), que tem monitorado de perto as atividades nucleares do Irã, anunciou no sábado (16) que o governo persa sanou todos os problemas que levantavam “preocupações” e cumpriu sua parte nos compromissos. O diretor-geral da Agência Yukiya Amano chegou ao Irã nesta segunda-feira (18) para reunir-se com o diretor da Organização de Energia Atômica do Irã, Ali Akbar Salehi, garantindo ainda maior cooperação entre as instituições.

Foi então anunciado o Dia da Implementação do Plano Abrangente de Ação, quando a AIEA declarou o cumprimento dos passos preparatórios por parte do Irã. Amano enfatizou, entretanto, que a janela de oportunidade precisa ser mantida aberta, ou seja, que as relações construtivas precisam avançar.

Mais de US$ 100 bilhões em ativos iranianos no exterior devem ser descongelados, ou melhor, devolvidos. Com o fim das sanções o Irã pode crescer mais 5% e exportar 500 mil barris de petróleo adicionais por dia, o que recobra a reflexão sobre a responsabilidade das potências pelo impacto desta política, já em si de inaceitável ingerência, sobre toda a população.

De acordo com a página da agência, o Irã tem dedicado-se a “sanar as preocupações” alegadas pelas potências mundiais devido ao seu programa nuclear desde 1974, através de acordos e protocolos adicionais, mesmo depois de, vitorioso em uma revolução popular que derrubou o autocrático regime aliado dos Estados Unidos, em 1979, o país passar a ser acossado e ameaçado com sanções.

"Programas democráticos" da USAID

Participando do programa Inside Story da emissora Al-Jazeera nesta segunda-feira (18), o professor de Estudos Globais da Universidade de Teerã Foad Izadi afirmou acreditar que as relações entre os EUA e o Irã “não estão em transformação” após o acordo e o eventual fim das sanções. “Basta olharmos para o Orçamento do [governo] dos Estados Unidos para verificarmos a persistência do ‘programa para a democracia’ no Irã, ou seja, para a desestabilização.”

O programa é gerido pela Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e pelo Escritório para Assuntos do Oriente Próximo do Departamento de Estado. De acordo com a Development Network, que audita iniciativas como esta, o orçamento do programa saltou de US$ 1,4 milhão em 2004 para US$ 66 milhões em 2008 (incluindo US$ 20 milhões repassados a “ativistas pela democracia”). Interessa notar que, durante o regime autocrático do Xá Mohammad Reza Pahlavi, a “democracia” não recebia tanto investimento. Não foi possível encontrar, tampouco, através de uma busca na Development Network ou no site da USAID, qualquer informação sobre um programa semelhante na Arábia Saudita.

Sobre as relações regionais, especialmente com a Arábia Saudita, após o recente rompimento de relações, mas também com o Kuwait, o professor Izadi afirma que o antagonismo é fomentado pela ingerência desestabilizadora dos EUA, já que não interessa ao Irã o confronto regional. Mas falando desde o Kuwait, Fahad Alsholaimi, presidente do Fórum do Golfo sobre Paz e Segurança, alega que a “ameaça” é a de que o Irã tente “interferir nos assuntos” dos países da região “exportando a sua revolução”. Afinal, esta sim é inaceitável para as autocracias aliadas do império.

Além disso, sanções voltaram a ser anunciadas pelos EUA como um “castigo” pelo teste de lançamento de um míssil persa em outubro do ano passado; 11 companhias e indivíduos ligados ao programa de mísseis iraniano estão proibidos de usar o sistema bancário dos Estados Unidos. Mesmo sendo o Irã um dos países mais vistoriados pela AIEA e mais empenhados num esclarecimento sobre as suas atividades nucleares, a ameaça de sanções ainda se mantém.

A Chancelaria iraniana declarou que este é um pretexto criado pelos Estados Unidos para não cumprir a sua parte nos compromissos, lembrando ainda da aliança com o regime israelense, para o qual a assistência militar bilionária mantém-se mesmo durante os episódios mais intensos do massacre dos palestinos. Veja a seguir o documento divulgado pela Casa Branca em 2015 a respeito desta aliança:

Enquanto isso, para não deixarmos de bater nesta tecla, Israel segue impedindo à agência internacional (da qual é membro desde 1957) qualquer acesso às suas instalações nucleares, de onde entre 80 e 200 ogivas nucleares são escondidas do mundo, com o oferecimento dos Estados Unidos.

Sanções, petróleo e o guru de Israel

Aliás, as sanções são geridas pela Divisão de Controle de Recursos Estrangeiros do Departamento do Tesouro estadunidense, de onde decolou David Cohen, louvado pelo diário israelense Jerusalem Post como o “guru judeu das sanções” quando nomeado por Obama, em 2015, para a vice-diretoria da Agência Central de Inteligência (CIA). Segundo o Washington Post, “desde 2011, Cohen liderou muitos dos programas mais agressivos do Departamento do Tesouro no exterior”, principalmente contra o Irã e a Rússia.

Israel e os EUA, cúmplices na manutenção de uma lógica internacional militarizada e de ameaça global, foram os responsáveis pelo atravancamento da Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) em 2015. O documento, já bastante conservador, deve ser revisado para tentar avanços ainda tímidos contra o desenvolvimento de mais armamentos nucleares, enquanto há décadas o mundo exige a sua completa eliminação. É o caso do Apelo de Estocolmo, um documento lançado ainda em 1950 pelo Conselho Mundial da Paz e que angariou mais de 350 milhões de assinaturas.
 
"Já chega, Vanunu, não vê que estamos ocupados? – A Birgada anti-proliferação". Charge retrata a
denúncia de Mordecai Vanunu, ex-técnico nuclear israelense, sobre a produção de armas
nucleares, e a negligência sistemática dos aliados de Israel.

Irã, a República Popular Democrática da Coreia, a Síria e a Venezuela estavam entre os 26 alvos de sanções dos Estados Unidos em 2015. Esta é uma política de acosso e avessa à diplomacia. Entretanto, a liderança estadunidense e seus porta-vozes acreditam que o acordo nuclear com o Irã resultou desta ameaça – ou assim o declaram. É evidente, porém, que os cálculos em Washington não podem deixar passar a relevância e o peso do Irã a nível regional e o fracasso da política de sanções contra o país.

A enchente de petróleo nos mercados mundiais tem colocado o preço do barril no chão e não faltam análises sobre o papel dos produtores do Golfo, ou até das chamadas “Sete Irmãs”, o cartel formado por Anglo-Persian Oil Company (britânica, atual BP), a Standard Oil California (SoCal, estadunidense), a Texaco (depois, ChevronTexaco, e depois Texaco novamente), a Royal Dutch Shell, Standard Oil of New Jersey (Esso), a Standard Oil of New York (atual ExxonMobil) e a Gulf Oil (depois absorvida pela Chevron, que se tornou ChevronTexaco). No mesmo sentido, a emersão da Rússia na produção de petróleo devolve uma conhecida reflexão à discussão, sobre um confronto no palco do mercado.

Segundo o Financial Times, as novas grandes empresas petrolíferas (que a revista classifica como as novas “sete irmãs”, na minha opinião, de forma questionável, pois o termo refere-se a um cartel) são: Aramco (Arábia Saudita); Gazprom (Rússia); CNPC (China); NIOC (Irã); PDVSA (Venezuela); Petrobras (Brasil); Petronas (Malásia). Todas são estatais ou semiestatais, essenciais para o fortalecimento das soberanias nacionais que, por sua vez, são tidas como ameaças para a sobrevivência da hegemonia do império.

Enquanto as análises variam entre os cálculos geoestratégicos das “guerras por recursos” e os governos que ameaçam a “segurança do Ocidente” (leia-se, para garantir acesso barato e eficiente aos ditos recursos e manter abastecida sua maquinaria imperialista), conquistas como o acordo nuclear mostram que a diplomacia segue sendo a única via para o progresso e o fim das ameaças de guerra. É claro, porém, que com a persistência do império na sustentação da sua hegemonia, um pé fica mantido atrás.