A origem da “reforma” da Previdência Social

A pressão pela “reforma” da Previdência Social nasceu com o desajuste fiscal causado pela política de perseguir elevado superávit primário. O dilema é macroeconômico e nada tem a ver com pagamentos indevidos de benefícios.

Por Osvaldo Bertolino

Previdência

Na propaganda da “reforma” da Previdência Social há um fosso enorme entre discurso e realidade, entre o dizer e o ser. Antes de tudo, é preciso considerar que a palavra previdência remete à ideia de seguro social. Segundo o dicionário Houaiss, quer dizer qualidade do que é previdente; previsão do futuro; conjectura; faculdade de ver antecipadamente; antevidência, presciência.

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Pode ser também uma instituição privada que, cobrando certo número de contribuições dos associados, deve substituir a Previdência Social, garantindo àqueles aposentadorias e pensões. Pode também ser um conjunto de instituições estatais ou paraestatais cujo objetivo é proteger e amparar o trabalhador e sua família na velhice e na doença, por meio de aposentadorias, pensões etc., além de assistência médica e hospitalar; seguridade social. A palavra vem do latin praevidentìa e quer dizer “previsão, previdência”.

Clubes de futebol

Parece óbvio, mas no raciocínio dos neoliberais essa lógica cedeu lugar à crença de que os recursos que no futuro pagariam as aposentadorias devem incentivar atividades da economia do país. Sem a “reforma” da Previdência Social, dizem, não há como o país crescer. Eles sequer questionam se as fontes garantidoras da poupança advinda das contribuições ao setor serão suficientes para cobrir tanta responsabilidade; na “reforma” trabalhistas surgiu a ideia de desobrigar o patronato de parte das contribuições previdenciárias.

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Essa norma está estipulada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em sintonia com a convenção 95 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) — ratificada pelo Brasil e que estabelece o princípio da proteção do salário ao expor em seu item 3 do artigo 11º que a legislação nacional deve determinar “a relação de prioridade entre o salário, que se constitui em crédito privilegiado, e os demais créditos preferenciais”. Ou seja: a lei permite o pagamento em outras modalidades que não em dinheiro e a CLT determina o recolhimento da contribuição social sobre essa parte indireta de remuneração. Casos bem conhecidos são o vale-refeição, o vale-transporte, a moradia, mas também são aceitos vestuário, cesta básica e outros.

Algumas dessas formas a lei isentou de contribuição previdenciária. Se todas ficassem isentas, a Previdência Social poderia enfrentar problemas financeiros ainda maiores. Já há casos injustificáveis, como o dos clubes de futebol que contribuem desde 1993 com apenas 5% da renda dos jogos. Vários clubes estão sem contribuir há anos porque a principal fonte de renda está vinculada ao patrocínio e aos direitos de transmissão na televisão.

Galope dos juros

É evidente que uma “reforma” que aprofunde esse raciocínio, sintetizado na pregação sistemática de combate ao “déficit” que compromete o “ajuste fiscal”, inviabiliza a Previdência Social. Esse mantra nasceu na “era neoliberal”, com mais força no início do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), reeleito em 1998. Os economistas do governo e seus aliados diziam na mídia que o Brasil teria uma missão urgente e vital: pôr fim ao crônico “desequilíbrio” das contas públicas, uma fragilidade ameaçadora dos chamados “fundamentos macroeconômicos”.

Antes, vez por outra haviam vozes da direita dizendo que o país deveria buscar o “ajuste fiscal” para assentar “o processo de estabilização da economia” iniciado com o “Plano Real” em bases sólidas. Até o final de 1997, o déficit público de 4,46% do Produto Interno Bruto (PIB) não era preocupante. Um ano mais tarde, depois do malogrado pacote de 51 medidas anunciado pelo governo para cortar gastos e aumentar receitas, o déficit público já era superior a 7% do PIB.

O galope decorreu da elevação da taxa de juros posta na estratosfera para escudar o “Plano Real” de “ataques especulativos” depois do furacão que começou a girar na Ásia e se transformou numa tormenta financeira que convulsionou o mundo. Na condição de dono de um papagaio superior a R$ 350 bilhões, que era a dívida pública brasileira, o Estado foi o primeiro a sentir a mordida dos juros. As despesas com esse item passaram de 0,74% do PIB em 1991 para 4,71% nos 12 meses terminados em maio de 1998. Na verdade, o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) fez uma enorme desordem fiscal e meteu o país numa sinuca complicada.

Bomba-relógio

Desde então, fora as notas dissonantes de sempre, o que se ouviu foi a necessidade premente de um duro “ajuste fiscal”. O conjunto de medidas anunciado conduziu o país ao fundo do poço. “Ninguém gosta de recessão, evidentemente. Mas, se esse for o preço a pagar por um saneamento verdadeiro das contas, o país terá, mais à frente, todas as condições de retomar o crescimento em bases sólidas. A conta será tanto mais alta quanto mais tempo demorar para que o ajuste seja feito”, disse à época o ministro da Fazenda, Pedro Malan.

Segundo ele, cuidar dos “desajustes”, apertando os cintos alguns furos a mais, era a única saída que restava ao Brasil para reduzir a vulnerabilidade diante da pior crise financeira dos últimos 50 anos. Para garantir o empréstimo emergencial pleiteado junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o governo comprometeu-se, num comunicado conjunto divulgado em Washington no encerramento da reunião anual daquele organismo internacional, a buscar um superávit primário de 2,5% a 3% do PIB. Isso significava que o país teria de cortar cerca de R$ 25 bilhões do orçamento de 1999 para pagar parte dos encargos de uma dívida que nunca mais pararia de crescer.

Alimentada pelos juros altos, ela já gerava encargos anuais de aproximadamente R$ 70 bilhões e se transformou na bomba-relógio que ameaça o país. A última vez que o setor público — União, Estados e municípios — havia conseguido um superávit primário em suas contas foi em 1995, um resultado modesto, de apenas 0,27% do PIB. O governo não conseguia ter superávits primários porque o “Plano Real” instituiu a taxa de juros elevada como instrumento de combate à inflação. “O governo vai ter de cortar agora na veia, no osso, no sangue, na carne”, disse Malan. Isso, evidentemente, não incluía os juros. Foi aí que entrou a pressão pela “reforma” da Previdência Social, da qual o país não mais se livrou.