A equidade na  divisão dos direitos de TV da Premier League

Embora não se configure como um modelo plenamente igualitário, o formato de divisão inglês é aquele que, no futebol, mais se aproxima do ideal de justiça como equidade

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No dia 1º de junho, a Premier League inglesa anunciou oficialmente a distribuição dos recursos dos direitos de transmissão televisiva da temporada 2016/17. E se no ano passado, o Arsenal se tornou o primeiro clube a romper a barreira dos 100 milhões de Libras (£100,9milhões), neste ano 17 dos 20 participantes do campeonato receberam acima dos £101 milhões. O Chelsea, campeão, foi o que mais faturou, com £150,8 milhões. No fundo da tabela ficou o Sunderland, lanterna da competição, com £93,4 milhões (ainda assim, 200 mil Libras a mais do que o Leicester, campeão em 2015/16, havia ganho após o histórico título). A diferença do topo para o fundo ficou em 1,61:1. Um pouco maior do que o 1,51:1 da temporada anterior, mas, ainda assim, uma ratio que faz da Premier League aquela com a divisão mais equânime dentre todas as ligas de futebol europeias.

Embora não se configure como um modelo plenamente igualitário, o formato de divisão inglês é aquele que, no futebol, mais se aproxima do ideal de justiça como equidade de John Rawls. De forma bem resumida, o que Rawls preconiza é que “a sociedade constitui um sistema de cooperação social equitativa entre pessoas livres e iguais” e que “a teoria da justiça como equidade é uma concepção da justiça válida para uma democracia”. Para o autor, “a teoria da justiça como equidade parte da ideia de que a sociedade deve ser concebida como um sistema equitativo de cooperação”. A ideia de “cooperação social” na busca da efetivação da liberdade e da igualdade é bastante enfatizada por Rawls, que chama a atenção para que “as vantagens produzidas pelos esforços de cada um sejam equitativamente adquiridas e distribuídas de uma geração para outra”.

Mas como a sociedade vai perseguir este “sistema equitativo de cooperação”? Para assegurar a equidade no momento da escolha da “vantagem racional”, Rawls descreve a “posição original”, na qual as pessoas estariam sob o “véu da ignorância”. Condição na qua deixa de haver características individuais, afinal “ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante”. Will Kymlicka explica o “véu da ignorância” com o exemplo da tentativa de se obter uma divisão justa de um bolo, assegurando que a pessoa que vai cortá-lo não saiba qual pedaço vai receber. Esta igualdade de posição garantiria uma escolha racional pelos princípios de justiça isenta dos arbítrios do individualismo.

É com base nesse raciocínio que argumento em meu livro, “Cotas de televisão do campeonato brasileiro – apartheid futebolístico e risco de espanholização”, que é o modelo de negociação coletiva (como o da Premier League) aquele que se aproxima mais do ideal de “cooperação social”, não permitindo “que alguns tenham mais trunfos do que outros na negociação”.

Terceira maior liga desportiva em faturamento no mundo, atrás apenas da National Football League (NFL, liga de futebol americano) e Major League Baseball (MLB, liga de beisebol norte americana), na Premier League os valores obtidos pelas vendas aos mercados doméstico e externo são distribuídos de modo diferente. O faturamento das negociações no exterior é partilhado de forma 100% igualitária (aí, sim, em sintonia com o ideal “Rawlsiniano”) – o que rendeu £39.090.596 para cada um dos 20 participantes em 2016/17. Já o dinheiro do mercado nacional é dividido em três partes (50% divididos igualitariamente entre todos os clubes; 25% baseados na classificação final da temporada anterior [o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que recebe o último classificado]; 25% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão).

Vale lembrar, ainda, que a Premier League tem um sistema de solidariedade em que distribui seus recursos com as divisões inferiores do futebol inglês. E não me refiro apenas ao sistema de paraquedas – que busca proteger os clubes que caíram da Premier League para a Championship recentemente (£219,1 milhões foram distribuídos entre oito clubes em 2016/17, com o Aston Villa no topo, com £40,9 milhões, e Reading e Wigan no fundo, com £16,3 milhões). Os clubes da Championship (£4,3 milhões cada), League One (£650 mil cada) e League Two (£430 mil) também recebem uma parte das receitas das vendas dos direitos de TV da elite inglesa. Já imaginaram o choque que seria para os clubes da elite brasileira sequer se discutir a divisão de um pouco de suas receitas com as equipes da Série D nacional, por exemplo?

O caso do campeonato espanhol também é emblemático. Após o Real Decreto-ley 5/2015, não só a soma total das vendas dos direitos de transmissão de La Liga subiu (65% em relação à temporada anterior, segundo relatório publicado recentemente pela KPMG) como a ratio entre o topo e o fundo da tabela deverá cair de 5:1 para algo como 3,5:1 (estimativa do jornal As). Os números mostram que a negociação centralizada beneficia o coletivo, aumentando o faturamento global da liga espanhola e distribuindo de forma menos desigual os recursos.

Clubes optaram pela “lei da selva”

Walter Graziano, ao comentar a teoria dos jogos de John Nash, corrobora a teoria da justiça como equidade, de John Rawls, ao demonstrar que a cooperação gera mais benefícios à coletividade do que o individualismo, quando na busca pelo seu bem-estar o indivíduo não perde de vista os dos demais membros da sociedade. Graziano argumenta que, em sua teoria, Nash comprova que o comportamento individualista pode levar a sociedade à “lei da selva”.

Em meu livro, “Cotas de televisão do campeonato brasileiro”, constatei que a forma como o Clube dos Treze dividia as “cotas de TV” gerava uma segregação entre clubes “grandes” e “pequenos”, contribuindo para o engessamento da mobilidade entre os clubes. Em analogia ao “apartheid social” – as desigualdades de uma sociedade composta por “incluídos” (ricos) e “excluídos” (pobres) -, estabeleci o termo “apartheid futebolístico”: a concentração dos recursos no futebol brasileiro estabelecia uma lógica excludente, gerando também clubes “incluídos” e clubes “excluídos”.

A implosão do Clube dos Treze em 2011 e as negociações individuais dos clubes com a Rede Globo escavaram ainda mais o fosso intransponível entre “incluídos” e “excluídos”. E se autores como John Rawls ou John Nash não fossem suficientes para o demonstrar, a experiência empírica das ligas espanhola e portuguesa mostravam o óbvio. A tendência do individualismo é privilegiar os mais fortes, aumentando a concentração de recursos, promovendo a “lei da selva”: que, no futebol, representa uma competição financeira e não desportiva.

Contudo, é necessário que se aponte para todos os responsáveis por essa situação de desigualdade e segregação no futebol brasileiro. A rede de televisão não pode ser a única culpada por isso. Pelo contrário. Os clubes da elite brasileira, em sua lógica excludente e gananciosa, têm enorme parcela nisso tudo. Podiam ter aproveitado a determinação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que havia determinado uma venda coletiva dos direitos de TV como forma de não prosseguir com a investigação contra Globo e Clube dos Treze por formação de cartel (referente a contrato de 1997-1999). Era o momento ideal para que se fizesse um processo licitatório transparente e que, juntos, negociassem em prol da coletividade. Contudo, optou-se por outro caminho. Um caminho em meio à selva e regido pela leis desta, que a cada ano vai aprofundando ainda mais as desigualdades entre os clubes.

Sugestões de leitura

Kymlicka, W. (2002). Contemporary Political Philosophy (2nd ed.). Oxford University Press.

Leite Junior, E. (2015). Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: “apartheid futebolístico” e risco de “espanholização.” Recife.

Rawls, J. (1999). A theory of justice. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.

Rawls, J. (2000). Justiça e Democracia. São Paulo: Martins da Fonte.

Rawls, J. (2000). O liberalismo político (2nd ed.). São Paulo: Ática.

*Emanuel Leite Jr, é doutorando em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro (Portugal), bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. Autor do livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”, que serviu de base para o PL 755/2015 que visa a regulamentar as “cotas de TV”no Brasil.