Walter Falceta: De novo sobre Aquarela do Brasil

O samba-exaltação de Ary Barroso, entoado por mil vozes, vira um hino, bacana, animado e sofisticado. Difícil é traduzir as expressões da letra – nem mesmo os brasileiros conhecem o sentido de várias delas.

Lembro que na Copa da França, em 1998, a torcida brasileira, sem modinhas “customizadas”, resolveu recorrer à antiga Aquarela do Brasil, do mineiro-carioca Ary Barroso (1903-1964). E não é que ficou bonito! Esse samba-exaltação, entoado por mil vozes, vira um hino, bacana, animado e sofisticado.

Difícil era traduzir as expressões da letra. Vale dizer que nem mesmo os brasileiros conheciam o sentido de várias delas.

Che cosa è “inzoneiro”? – perguntava intrigado um italiano, que pelo conhecimento do latim julgava decodificar qualquer expressão do Português do Brasil.

Alguém lhe disse que seria um “bugiardo”, ou seja, um mentiroso. Discordei imediatamente. Disse-lhe que podia ser algo como “furbo”, ou seja, manhoso com astúcia.

Um inglês dançou nessa. Pensei e acreditei que a palavra seria “sly”. Mesmo sem muita certeza, sentenciei: “sly, very sly”.

Noutro dia, a discussão foi com brasileiros e um argentino. O problema era com os versos:

“Ah! Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado”.

O hermano acreditava que houvesse relação com a savana brasileira que viu em volta de Brasília, arbustos, arvorezinhas, mato baixo. A ideia, portanto, era retirar dali uma mãe negra, possivelmente abandonada pelo filho.

Bom, de novo, discordei, não sem mergulhar na dúvida, mas relembrando os estudos culturais sobre o Estado Novo, na época da PUC-SP. Na verdade, abrir a cortina do passado se refere a escancarar o passado escravista do Brasil e a participação das mulheres negras africanas ou descendentes na constituição das famílias brasileiras.

A mãe preta é, na verdade, a ama de leite, que deu proteína e vida a tantos filhos de fazendeiros e donos de engenho. O cerrado em questão não tem relação com qualquer tipo de vegetação, mas com o lugar onde os escravos acabavam confinados depois dos dias exaustivos de trabalho. Tirar a mãe preta de lá equivale a derrubar os muros da senzala estendida.

Por isso, Barroso canta, logo depois:

“Quero ver essa dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado”

O salão é aquele da casa grande, dos senhores de posses hereditárias, os clubes das antigas elites rurais opressoras do povo negro. Assim como o compositor quer ver protagonismo daqueles subjugados pela força bruta, pretende ver o rei congo no congado.

Alguém encafifou-se com o Brasil “trigueiro”, ou seja, tem a cor do trigo maduro. “Ripe wheat”, arrisquei para outro inglês, este de Liverpool. Até hoje não sei se é “inglês macarrônico”. Se for, me avisem!

E antes tinha, lógico a morena (logicamente da cor dos mouros) que ganhou o adjetivo de “sestrosa”. Aí, de novo veio polêmica. Sestroso pode ser sinônimo de malandro; no passado, dado à capoeiragem.

Bom, sestro tem a ver com “esquerdo”, o que sempre me fascinou. Na canção, decidi que o significado era aparentado de inzoneiro. A morena tinha lá suas malícias, suas astúcias, tão necessárias numa sociedade machista e desigual.

Restou “merencória”. Isso outras gentes sabiam. Essa luz da Lua é melancólica, triste, e é citada depois do verso “Deixa cantar de novo o trovador”, um protesto contra a censura estatal. Até a própria letra de aquarela foi canetada pelo nefando Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

Achavam que “terra de samba e pandeiro” não pegava bem para a reputação do país. Com suas acrobacias retóricas, Barroso acabou convencendo os censores imbecis e evitou a mutilação da letra. A história é esta. Em um tempo de ódio ao congado, de censura aos trovadores e de perseguição policial às mães e pais pretos, vale recordar as cores da nossa aquarela.

LEIA TAMBÉM
Sérgio Augusto: Aquarela do Brasil chega aos 80 como um Hino Nacional 

Autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *