Sem categoria

Val Gomes: como Marinho Castellar virou um grande músico dos anos 1980

O cantor e compositor Marinho Castellar (1957-1990) foi um dos mais talentosos artistas da cena musical “independente” dos anos 1980. Morando a maior parte de sua vida em Piracicaba (sua cidade natal), São Paulo, Mococa e Rio de Janeiro, viajou dez anos pelo Brasil para participar de festivais, fazer shows e divulgar seus poemas, contos e canções, incluindo as que fazem parte do LP independente Marinho Castellar – Fera Livre Ato Ovo.

Por Val Gomes

Marinho Castellar

Gravado por Marinho Castellar, Simara e banda Disritmia, nos meses de setembro e outubro de 1980, em São Paulo, este disco reúne doze músicas (Beira Rio, Pedra, Poranduba, Arco Íris, Terra de Ninguém, Verde Clara, Painha, Pelo Amor meu Amor, Atenção, Luando, Chora Neném e Papagaio e Holofote). São canções com conteúdos libertários, arranjos coletivos e nítidas referências à MPB, à música caipira ou regional, à sonoridade medieval, ao rock, ao blues, ao jazz e às experimentações instrumentais, mas antes de tudo originais e feitas com toda liberdade de criação, sem imposições de mercado.

Graças a Deus é possível ouvir as faixas deste trabalho pela internet, mas quem na época adquiriu o LP tem em mãos um produto raro, um bolachão “cult”. O disco chega ser oferecido na rede por até mil reais. A capa e contracapa são uma atração à parte: quando abertas, em formato de um grande ovo (em alusão à gênese), de um lado vê-se a uma paisagem mística, de sonhos, psicodélica, pintada por Caiubi Penteado, e do outro um desenho do rosto de Marinho Castellar, em um mapa astrológico, de autoria do também músico, parceiro e artista plástico Chicoelho. O bolachão, de acetato colorido, amarelo, em alusão à gema, parece muito com aqueles “disquinhos” de estórias e músicas para crianças.

Luz na escuridão

Em entrevista à Folha de S.Paulo, na matéria “Disritmia, a música em forma de ovo”, de 18 de junho de 1981, Marinho e Chicoelho disseram que no mapa astrológico podia-se se ler que os anos 1970 eram o “período da noite” e que em 1981 entrávamos no ano solar que revolucionaria o meio artístico. Trecho da matéria: “Nossa proposta é um ovo de Colombo. Partimos da simplicidade, com uma nova maneira de lidar com a harmonia: cada um de nós cria os seus próprios arranjos, na mesma música. Adotamos o símbolo do ovo com o significado de raiz”.

Vale lembrar que nesta época também surgiram nomes como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, na diversificada vanguarda paulistana, antecipando a explosão do rock nacional que, mesmo alimentado comercialmente pela indústria cultural, abriu espaço para o surgimento de inúmeras bandas e ajudou a desanuviar, pela música, a barra pesada imposta pela ditadura iniciada em 1964 no Brasil.

Tive a sorte de ver o espetáculo poético-musical Fera Livre Ato Ovo, com as canções do LP e textos de Smetak, Hermann Hesse e John Cage, e de pessoalmente conhecer Marinho Castellar em apresentações solos, com sua voz harmônica, criativo violão e poesia transcendental. Uma fita cassete, com canções inéditas, incluindo alguns sambas bem ao estilo tradicional carioca, também passou de mão em mão para ser reproduzida pelos fãs do compositor piracicabano.

Em sua intensa e breve vida (faleceu aos 33 anos), Marinho Castellar foi um artista universal, que merece ser reverenciado pelos amigos da época e ter seu trabalho conhecido pelas gerações mais novas. Eis a intenção deste texto-homenagem.

* Val Gomes é jornalista

(Texto publicado originalmente no site
Imprensa Sindical)

********

PELO AMOR, MEU AMOR
(Marinho Castellar)
A rua anda assim tão depressa que pressa que a minha cabeça parece que vai dançar/
Às vezes no meio do mundo já perco o sentido movido calado virado no gado da multidão/

Espalha esse aperto comigo, meu amor, e grita é um grande perigo, desfrutar/
Desfrutar da terra prometida perdendo seus filhos vendendo pra sempre futuras gerações/

Espalha esse aperto comigo, meu amor, e grita é um grande perigo, pelo amor/

Os índios virando presunto o assunto da guerra que a terra faz glória inventando esse falso (branco) deus/

Espalha esse terror comigo, meu amor/
E grita é um grande perigo, pelo amor/

A gente vai engolindo estórias aflitos que os donos dos mitos das glórias querem mais é que… Acabe esse sonho por isso, meu amor, espalha esse sonho comigo, pelo amor/

Já andam construindo gente nos laboratórios nos fóruns das modernas inquisições/
e lavam imediatamente a mente daqueles que amam e sonham e vivem pelo amor/

Acaba com isso comigo, pelo amor, e mostra o perigo que é isso, meu amor/

O deus branco de sempre é a técnica multi-anti-magnética que gela o coração/
E congela todos os sentidos e devasta nosso paraíso natural.

 
“A coisa mais insensata é deixar-se envelhecer pobremente.
Depende da sua vontade de viver, de exigir da vida o máximo que ela pode lhe dar”.
(Carlos Dratovsky)