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Urariano Mota: O sonho americano

Em setembro de 2005, publiquei em La Insignia o texto “O sonho americano”. Na ocasião, eu associava o sonho à falta de assistência aos negros sob o furacão Katrina.

Por Urariano Mota*

American way of life

Agora, leio esta notícia, que copio da Agência Brasil:

Imigrantes são detidos e afastados dos filhos no Mississipi

Cerca de 700 imigrantes foram detidos nessa quinta-feira (8) no estado norte-americano do Mississipi, apenas algumas horas antes de Donald Trump ter visitado El Paso e Dayton, cidades do Texas e do Ohio onde morreram dezenas de pessoas em tiroteios… Foram várias as crianças que choraram ao sair da escola e perceber que os pais não estariam lá para buscá-las. “Governo, por favor. usa o coração, deixa o meu pai sair em liberdade”, disse uma menina de 11 anos entre lágrimas. “Preciso do meu pai. Ele não fez nada, não é um criminoso”.

“Eu não posso fazer nada, mas, por favor, abram as portas aos pais que estão nas prisões. Foi o meu primeiro dia de escola e agora não sei onde vou comer hoje. Não sei o que vou fazer agora”, soluçou a criança.

Aquele texto de 2005 é atualizado por essa notícia. E volta a seguir:

Não sei o que é mais apavorante, se o sonho ou se o pesadelo norte-americano.

O sonho, todos os povos à margem do mundo anglo-saxônico sabemos o que é: vida farta, riqueza, poder desmesurado de compra e de venda, prêmio conseguido ao fim por um self-made-man. E o man seria qualquer um de nós, negro, amarelo, mestiço, quase branco ou quase wasp. Nesse caminho, nesse way, a todos que na terra USA chegássemos, aportássemos, bastaria praticar o manual "só é pobre quem quer", para conseguir ser um best. E ser um best, em suma, é o próprio sonho americano.

Ser um best, o melhor, é mais que um superlativo de good ou de well. Ser um best, para os modestos, é ser o melhor na sua profissão, ou na sua atividade.

No sonho americano, isso significa mais que o dar o melhor de si em qualquer ação, é mais que o envolver a própria pessoa no seu agir. É vencer todos os demais, é derrubar todos os outros na sua profissão, é ser o boss, o chefe, é mais, é ser o tycoon, o magnata, o godfather, o chefão, é ser o God, enfim, o poderoso, o supremo. Isto, para quem conhece o preço dessa meta, é apavorante. Porque é uma anti-humanidade. Porque, também, guarda uma desumana e inumana mentira. Um paradoxo de vigarista. Se o the best nasceu para todos, ninguém jamais será the best. Por um lado, este superlativo exige que todos os demais sejam superados e vencidos. Por outro, dizem os vigaristas, os demais também são the best. Porque, continuam, os Estados Unidos são a terra da oportunidade. Para todos, para todos …

Ainda que o sonho não se realize para todos, façamos uma recordação, que é uma forma de pensar. Quando lembramos, refletimos, que o extraordinário poder de compra para todos exige a contrapartida de poder de venda de todos, para todos, entramos em uma coisa mais profunda que um thriller. Pela simples razão de que isso universaliza, universaliza, não, unifica tudo e todas as coisas à qualidade útil de mercadoria. O que vale um beijo, um afeto, um amor, isto não se pergunta. Avalia-se, com a mão sobre o talonário de cheques: quanto custa um beijo, um afeto, um olhar de ternura? Paga-se, em dólar. A própria pessoa, a própria beleza e criação transformam-se em algo degradado, infamante. Mas os pobres, reconheçamos, os miseráveis de todo o mundo não se dispõem a sentir muita filosofia ou discutir estética. Estão carentes de tudo, de alimentos, de pedras no estômago, de casa, de abrigo, na rua ou na prisão, que importa, e por isso seguem para o rainbow, para o baú de ouro que está ao pé do arco-íris. O próximo capítulo dessa busca, sabemos, é um vácuo, um mergulho no espaço além da terra.


 
O pesadelo americano, para a maioria da gente, foi o 11 de setembro de 2001. Aquela imagem do avião a perfurar uma das torres gêmeas, como uma agulha perfura um tumor, e de lá explodindo pus, em forma de fogo, e depois um outro, a ratificar e confirmar o absurdo que era o terror na terra onde sempre nasce o arco-íris, e depois o desabamento, do aço, do concreto à experiência, os gritos, o espanto, os corpos dilacerados, aquilo foi a encarnação do pesadelo em terras norte-americanas. O comum da gente toma aquilo como o pesadelo porque o comum da gente acredita no que vê e no que se repete à exaustão até o nível de idiotia. Mas o pesadelo e seu outro, o sonho norte-americano, vem de antes, bem antes com "Estranhos Frutos”, a canção imortal que Billie Holiday gravou para sempre.

Em tradução livre:

“As árvores do Sul suportam estranhos frutos
Sangue nas folhas
Sangue na raiz
Corpos negros balançando na brisa do Sul
Estranhos frutos pendurados nas árvores de madeira branca
Cena do campo do nobre Sul
Os olhos arregalados e as bocas torcidas
O doce perfume da magnólia e frescor
E de repente o cheiro de carne queimada
Eis um fruto para o corvo bicar
Para a chuva vincar
Para o vento sugar
Para o sol estragar
Para a árvore derrubar
Nesta estranha e amarga colheita"

No original:

“Southern trees bear strange fruit
Blood on the leaves
Blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees
Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
The scent of magnolia sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh
Here is a fruit for the crows to pluck
for the rain to gather
for the wind to suck
for the sun to rot
for the tree to drop”


Essa lembrança da eterna canção de Billie Holiday aproxima o sonho do seu siamês. No momento, vemos as imagens de crianças separadas dos pais na caçada aos imigrantes ordenada por Trump.


Isso já passou de um pesadelo. Voltamos a mergulhar no verdadeiro sonho americano.

* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances
Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.