Em setembro de 2005, publiquei em La Insignia o texto “O sonho americano”. Na ocasião, eu associava o sonho à falta de assistência aos negros sob o furacão Katrina.
Por Urariano Mota*
Publicado 09/08/2019 12:11 | Editado 13/12/2019 03:29
Agora, leio esta notícia, que copio da Agência Brasil:
“Eu não posso fazer nada, mas, por favor, abram as portas aos pais que estão nas prisões. Foi o meu primeiro dia de escola e agora não sei onde vou comer hoje. Não sei o que vou fazer agora”, soluçou a criança.
Aquele texto de 2005 é atualizado por essa notícia. E volta a seguir:
O sonho, todos os povos à margem do mundo anglo-saxônico sabemos o que é: vida farta, riqueza, poder desmesurado de compra e de venda, prêmio conseguido ao fim por um self-made-man. E o man seria qualquer um de nós, negro, amarelo, mestiço, quase branco ou quase wasp. Nesse caminho, nesse way, a todos que na terra USA chegássemos, aportássemos, bastaria praticar o manual "só é pobre quem quer", para conseguir ser um best. E ser um best, em suma, é o próprio sonho americano.
Ser um best, o melhor, é mais que um superlativo de good ou de well. Ser um best, para os modestos, é ser o melhor na sua profissão, ou na sua atividade.
No sonho americano, isso significa mais que o dar o melhor de si em qualquer ação, é mais que o envolver a própria pessoa no seu agir. É vencer todos os demais, é derrubar todos os outros na sua profissão, é ser o boss, o chefe, é mais, é ser o tycoon, o magnata, o godfather, o chefão, é ser o God, enfim, o poderoso, o supremo. Isto, para quem conhece o preço dessa meta, é apavorante. Porque é uma anti-humanidade. Porque, também, guarda uma desumana e inumana mentira. Um paradoxo de vigarista. Se o the best nasceu para todos, ninguém jamais será the best. Por um lado, este superlativo exige que todos os demais sejam superados e vencidos. Por outro, dizem os vigaristas, os demais também são the best. Porque, continuam, os Estados Unidos são a terra da oportunidade. Para todos, para todos …
Ainda que o sonho não se realize para todos, façamos uma recordação, que é uma forma de pensar. Quando lembramos, refletimos, que o extraordinário poder de compra para todos exige a contrapartida de poder de venda de todos, para todos, entramos em uma coisa mais profunda que um thriller. Pela simples razão de que isso universaliza, universaliza, não, unifica tudo e todas as coisas à qualidade útil de mercadoria. O que vale um beijo, um afeto, um amor, isto não se pergunta. Avalia-se, com a mão sobre o talonário de cheques: quanto custa um beijo, um afeto, um olhar de ternura? Paga-se, em dólar. A própria pessoa, a própria beleza e criação transformam-se em algo degradado, infamante. Mas os pobres, reconheçamos, os miseráveis de todo o mundo não se dispõem a sentir muita filosofia ou discutir estética. Estão carentes de tudo, de alimentos, de pedras no estômago, de casa, de abrigo, na rua ou na prisão, que importa, e por isso seguem para o rainbow, para o baú de ouro que está ao pé do arco-íris. O próximo capítulo dessa busca, sabemos, é um vácuo, um mergulho no espaço além da terra.
Em tradução livre: