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Urariano Mota: As barbaridades de um filósofo best-seller

A entrevista do filósofo Pierre Lévy na Folha de S.Paulo (“Tecnologia pode tirar ciências humanas da Idade Média, diz Pierre Lévy”) nos leva a linhas de breve crítica. Escrevo ao correr do teclado, sem maiores notas, somente no ritmo do espanto diante da leviandade do pensador pop.

Por Urariano Mota*

Pierre Levy

Na urgência, seleciono esta resposta entre muitas da sua entrevista:

“Para mim, a chegada de computadores pessoais, depois, a internet, o smartphone e por aí vai, transformam o sistema de comunicação da nossa sociedade. Acho que a primeira grande revolução na história da comunicação foi a invenção da escrita, que levou a uma sociedade mais hierarquizada, dividida entre aqueles que sabem ler e escrever e aqueles que não sabem. Então houve uma segunda grande revolução, a invenção do alfabeto, dos algarismos arábicos com o número 0 e a invenção do papel pelos chineses. Depois houve a invenção da imprensa e, na sequência, rádio e televisão. Essas invenções automatizaram a transmissão de linguagem e de símbolos.

Cada vez que temos grandes transformações no sistema de comunicação, temos uma transformação na cultura e na civilização. E estamos atualmente nesse estágio porque em nosso novo sistema de comunicação toda informação é acessível. É onipresente. Todas as pessoas estão interconectadas, o que é ainda mais importante. E, acima de tudo, temos robôs que são capazes de automaticamente transformar símbolos, como fazer traduções ou cálculos estatísticos. Isso é completamente novo.

Aconteceu no espaço de apenas 20 ou 30 anos. É muito difícil pensar no que serão as implicações dessa mudança na comunicação, mas estamos apenas no começo dessa nova civilização”.

Primeiro, causa espanto uma declaração que alinha numa só frase com a maior naturalidade, por exemplo, a invenção “dos algarismos arábicos com o número 0”, ao lado de outras revoluções escolhidas de modo arbitrário no desenvolvimento da humanidade. Ora, a longa criação dos algarismos arábicos é bem anterior ao genial símbolo do zero. O fato de hoje estarem no mesmo sistema numérico não significa que foram, digamos, contemporâneos – 400 anos os separam. E não se diga, por favor, que o filósofo usa de informalidade, sem maior rigor histórico, Pensemos nas aulas de conhecimento que eram as entrevistas de Lukács, como em “Conversando com Lukács”.

Mas vamos ao ponto central da resposta do filóofo pop: “Essas invenções automatizaram a transmissão de linguagem e de símbolos”. Causa a mais funda estranheza a palavra “automatização” no curso da sua frase. Automatizar remete ao que se faz sem interferência humana. Mas, vá lá, ele pode ter querido dizer o que se faz no “automático”, quase sem consciência do que se faz. No entanto, aqui saímos de uma dificuldade para outra. Aquilo que fazemos no imediato, no “automático”, primeiro tem uma história de aprendizado e condicionamento que não são algoritmos ou interjeições “alô, alô”. Segundo, as invenções técnicas, científicas, se transformaram e se transformam em ferramentas, Se comparamos mal, quero dizer: quando usamos uma arma para matar um déspota, o objeto é apenas uma ferramenta para realização de humanidade.


 

Tanto na resposta escolhida quanto ao longo de toda entrevista, passa ao largo do filósofo pop a história do que temos feito com as invenções. O cinema, que surgiu como pura técnica, diversão, se transformou em arte legítima, de massas, ao longo século vinte. Pensem na diferença que existe entre os irmãos Lumière e Bergman. Ou na invenção do gramofone e a obra de João Gilberto. A grande arte é pródiga em recriações da técnica, da ciência e da tecnologia. Aliás, a grande arte não é só pródiga – é da sua natureza incorporar ferramentas, que antes seriam, digamos, inumanas.

Em mais de uma oportunidade, pude observar o quanto os cientistas de informática, os feras, conhecem pouco de humanidades, de literatura, de filosofia. Isso se reflete no alcance social do seu conhecimento. Mas para encerrar estas ligeiras notas, concluo por enquanto: penso que não é bem a Tecnologia que pode tirar ciências humanas da Idade Média. É mais o contrário. As ciências humanas é que podem tirar a tecnologia do seu atraso. Do seu estágio de ferramentas.

* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.