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Um milhão por um tostão

Nem moeda antiga, muito menos o magistral camisa 8 do Cruzeiro, o tostão das minhas memórias de criança era uma versão daquele muitas vezes aplicado em partidas de futebol, quando um jogador atinge a coxa de um adversário com o seu joelho.

Por Daniel Costa Lima*

Daniel com o pai - Foto: Arquivo pessoal

Acho que qualquer pessoa com algumas peladas no currículo já tomou ao menos um desses na vida e posso disser com quase certeza que nenhuma recorda o episódio de forma afetuosa ou saudosa. Pois bem, como o tostão da minha infância não era esse do futebol, a minha experiência é bem diferente.

Eu não sei dizer quando o primeiro deles aconteceu, mas acho que eu devia ter por volta de oito anos. Também não consigo descrever a cena em pormenores, mas é muito provável que eu estivesse deitado no sofá ou no chão da sala enquanto assistia televisão, quem sabe vendo um episódio de Armação Ilimitada ou uma corrida de Formula 1… O cenário do ato sempre era esse, eu ali, olhos vidrados na TV e de repente… “Ufff!”, num movimento ágil e sorrateiro um calcanhar tinha atingido a minha coxa. Claro, não com muita força, apenas suficiente para dar aquela dorzinha rápida e aguda.

As cenas seguintes também sempre se repetiam, eu me contorcia fingindo uma dor tão real que mataria Neymar de inveja, dizia “Tostão não é brincadeira!” e logo depois caia na gargalhada. Ao meu lado e igualmente se contorcendo, só que de tanto rir, estava o meu algoz, o mestre dos tostões, meu pai.

Repetir esse momento virou uma meta e rapidamente aprendi a desferir os tostões e o meu pai a seguir o script da vítima, rolando de dor e dizendo “Tostão não é brincadeira!”. Nessa busca, lembro que às vezes deitava ao seu lado, deixava a perna estrategicamente numa posição vulnerável e fingia desatenção. Pensando bem, acho que ele fazia o mesmo.

Tudo isso durava no máximo um minuto, mas na minha cabeça, a felicidade escancarada no rosto do meu pai dura até hoje. O mundo parava naquele minuto e volta a parar agora enquanto (re)escrevo essa memória.

Mas os anos foram passando e os tostões ficaram cada vez mais raros, até que num dia assim, como outro qualquer, o último aconteceu.

Eu devia estar com uns 15 anos, no meio de uma fase bastante retraída. O mundo basicamente se resumia a uma bola de basquete e a Nirvana, Pearl Jam, Metallica, Cypress Hill e House of Pain tocando no volume mais alto do meu discman (1993!). Meu pai, que nunca foi das pessoas mais falantes do mundo, seguramente se viu mais perdido ainda ao ter que lidar com aquele adolescente eternamente acabrunhado.

A vida seguia e mesmo morando embaixo do mesmo teto, o silêncio e a distancia entre a gente só crescia. Sem animosidade, sem briga – se em algum momento da minha infância ou adolescência tive raiva do meu pai, eu não lembro – “apenas” silêncio. Ele seguia a sua vida de homem devotado ao trabalho e à manutenção da família e eu tentava entender se havia algo na vida que me instigasse a mover.

Nessa pegada, por um bom tempo eu esqueci por completo dos tostões.

Aos 21 anos sai de casa e da cidade dos meus pais. Aos 26 me formei e aos 28 peguei um vôo sem passagem de volta pro sul do pais, longe do calor do nordeste e do conforto abafado da família. Casei, estudei mais, trabalhei, depois separei e fui fisgado durante uns bons anos pelo Rio…

E eis que chegamos a 2011, o ano em que o tostão voltou, me pegando mais de surpresa do que aquele primeiro da infância. Foi então que escrevi esse texto, produto de um processo de análise em que redescobri o meu pai e assim finalmente me descobri. Esse encontro tardio e por vezes bem doloroso – pois olhar à fundo pro espelho dói mesmo – me presenteou com a lembrança do largo sorriso em seu rosto, o que, por sua vez, me permitiu buscar o meu sorriso. O menino-homem acabrunhado (que ainda faz parte de mim) descobria que queria ser feliz.

Se o derradeiro tostão aconteceu mesmo em 1993 então já se vão 25 anos. Eu adoraria dizer que hoje a nossa relação está mais próxima do que nunca mas a vida segue o seu próprio roteiro e nele, quase sempre, seguimos demasiadamente apegados aos nossos papéis. Felizmente, conseguimos meter um improviso aqui e ali, quando rompemos o nosso silêncio e nos mostramos um pro outro.

Eu nunca havia alterado o texto que escrevi em 2011. Todo ano, no dia dos pais, eu o postava em uma rede social com essa foto da gente na praia de Maria Farinha, em Olinda. Eu o encerrava dizendo que diversas vezes, já adulto, me vi ao lado do meu pai, sentado ou deitado em algum sofá, os dois engolidos por um espesso silêncio e que nesses instantes eu lembrava da meta de Danielzinho e pensava “Eu daria um milhão por um tostão”.

Mas a vida deu uma bundacanastra e mudou o seu roteiro e, por tabela, também este texto, sendo a terceira e provavelmente a ultima vez em que serei pego desprevenido pelo tostão. Sem aviso, o texto pediu para ser reescrito no dia 31 de julho, aniversário de um ano do meu filho Francisco. Sem alarde, a imagem do meu pai brincando com Francisco me veio vivamente no dia seguinte. E lá estava ele. Aquele sorriso. Os olhos quase sumidos de tão apertados.

Pai, eu acabei de ter uma conversa com Danielzinho e ele concordou que não precisamos mais dar nem levar tostões. Ele me falou coisas lindas sobre tu e lembrou até do cheiro marcante da tua toalha molhada, que eu já tinha esquecido. Eu contei pra ele sobre Carol e Francisco, sobre o menino fantástico e gaiato que ele é, e disse que vamos nos mudar pra um apartamento que tem uma boxer chamada Flora, que é muito parecida com a nossa amada Dora. Ele riu e ficou muito feliz e foi quando sem nada dizer, compreendemos que queremos apenas que Francisco curta o máximo possível o lindo sorriso do seu avô e que o seu lindo avô, por sua vez, seja cada vez mais feliz, pois ele merece isso.

Com amor, Dani, Danielzinho e Cisco.