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Socorro para uma humanidade futura ou uma verdadeira humanidade  

Há árvores tão poderosas que mesmo o fogo não é capaz de matá-las. Elas resistem bravamente. Por isso, esse fogo tem que ser muito pungente e muito viral e perto do inferno para destruí-las. Há árvores que sobrevivem através de suas raízes fixas no chão. Sobrevivem porque o fogo apenas consome as suas cascas. Muitas são abrigos para os animais durante o fogo. E há sementes que precisam de calor para germinar de dentro da terra. Contudo, para tudo há um limite.

Por Adrienne Savazoni*

A destruição da Amazônia sob o governo Bolsonaro, na visão de osgemeos
Um índio (imitação da tristeza n° 2)

Seu rosto belo,
cor dos lábios meus.

Eu sou um índio
triste, sim!
Meus dentes gritam,
choram em mim.

Olhinhos, gestos, colibri
me levam para o sol.

Araçás, ingás, meu miriti
das águas caem aqui.

Menino, igara sobre o rio,
pássaro pousa em mim.
Eu sou um índio
triste, sim!

Quisera à noite
um verde trovão,
quisera Deus está em mim!

Icamiabas vêm
salvar meu coração.
No peito nascer flor,
eu amo e chamo a amplidão.

Um índio triste
chora em mim,
quisera Tupã uiku ixé pupé!

Eu sou um índio,
um pranto, um rio
o fogo, a solidão…!

(Edmir Carvalho Bezerra, poeta da Amazônia)

Nunca fui à Amazônia, um grande sonho da minha vida. Mas eu não preciso ir até ela para senti-la. Basta emanar a vida junto a uma árvore. A árvore, esse ser mais poderoso e mais desprezado da face da Terra, aquela que nos dá água e nos dá o alimento. Das quatro línguas latinas, somente em português a árvore é feminina. Aliás, mesmo no Latim Clássico, arbore é um substantivo masculino. O motivo pelo qual esse nome se tornou exclusivamente feminino na última flor de Lácio é algo que diz muito sobre a nossa cultura e a nossa raiz. E muito sobre a nossa história. Diz o quanto enxergamos a árvore como mulher e, talvez por isso, dentro de uma sociedade patriarcal e machista, seja normal maltratá-la e, em uma época em que se matam tantas mulheres por dia, seja normal destruí-la.

O fato de a palavra árvore ter se tornada uma fêmea em nosso idioma talvez seja o pouco de indígena que restou em nós, brasileiros, e aquilo que de mais indígena chegou aos portugueses. Alguns linguistas situam que árvore no português era substantivo masculino e com o repetitivo uso errado do artigo fora se solidificando no feminino, mas eu garanto que esse erro só foi possível com o contato dos portugueses com os povos originários. Somente os indígenas poderiam ensinar para os portugueses que a árvore, longe de ser um elemento de exploração comercial, seria uma Grande Mãe, uma Deusa, a fonte da vida. A que oferece fartura e proteção frente ao mundo.

Eu nunca fui à Amazônia, mas ouço o choro de cada uma daquelas árvores incendiadas tal como um dia chorei quando botaram fogo em minha Ilhéu. E quando a incendiaram, eu nem morava mais no Parque, já morava bem longe, mas sonhei com ela pedindo socorro para mim. E não é que ao visitá-la, descobri que havia sido verdade o meu sonho?

Eu escrevo esse artigo e choro. Choro como o ser humano se tornou mesquinho, robô, como se desumanizou. Como não consegue ver a vida que há dentro de uma árvore.

A dor de um povo originário ao ver a sua terra devastada é a mesma da queda de Adão e Eva do Paraíso. É uma dor incalculável e só é comparável à morte. Talvez a morte não seja tão dolorosa do que essa morte em vida. Ser expulso de seu bioma, ser os últimos seres humanos que ainda se integram à natureza, os últimos que têm peles e corações.

Eu nunca fui à Amazônia, mas eu falava com todas aquelas árvores através das minhas. Quando eu queria mandar uma mensagem para a grande imponente floresta, eu mandava através das folhas e dos ventos de todas aquelas árvores que me cuidavam. Cantava uma música, falava com elas e dizia para os seus grandes espíritos o quanto nos pertencíamos e o quanto elas eram importantes para o seio da vida. Sim, eu já fui um povo originário.

Nasci e cresci dentro de uma reserva de Cerrado com ilhas de Mata Atlântica, a última da Grande São Paulo e talvez uma das últimas do estado de São Paulo. Se eu visse o meu Parque Estadual do Juquery acabando, como a Floresta Amazônica nas mãos de grileiros sedentos por dinheiro, sinceramente, eu preferiria morrer. Como eu morro um pouco vendo o que estão fazendo com o maior bem vivo da humanidade.

Grande sensação de impotência frente a esses capitães do mato, hereditários de uma das colonizações mais odiosas da história humana. Não há perdão terreno e nem divino suficiente para aplacar um descalabro desses. Mal sabem esses canalhas que a Amazônia guarda uma biodiversidade capaz de vencer qualquer câncer, dor, doença, velhice, pobreza, fome e até falta de afeto e de amor.

A riqueza da Amazônia não é ela no chão, não é o seu subsolo, é a floresta em pé. Conhecemos muito pouco de sua biodiversidade, há indícios de animais nunca descobertos, insetos, plantas com um poder curativo nunca antes testado. E o lixo humano quer jogar fora assim em forma de cinzas, não sei se existe bicho mais estúpido que esse. Mas nem a falsidade da palavra “desenvolvimento sustentável”, o conto de fadas do século 21, seria capaz de tanto crime! Até essa palavra tão capitalista é mais inteligente que os coronéis deste País.

Engana-se que seja o capitalismo que esteja botando fogo na mata. O que existe no Brasil rural, nunca, mas nunca chegou a ser capitalismo. Nem sei se chega a ser a alta Idade Média. Está mais para o período dos bárbaros, fim do Império Romano e começo da baixa Idade Média. Período em que a conquista era feita pelo fogo, tortura, morte, prisões, estupros, seres humanos dentro de arenas cheias de leões. Nossa colonização nunca chegou a ser capitalista.

Até o capitalismo seria mais inteligente. Vocês acreditam mesmo que o capitalismo botaria fogo no lugar que lhe traria mais matéria-prima, dinheiro e poder, um lugar onde as fontes de se reproduzir em mercadoria são quase inesgotáveis? Desculpem-me, o que existe no Brasil rural não posso chamar de atraso, porque o mesmo já seria adiantado. Talvez não teriam conseguido se formar em Homo Sapiens. Não há precedentes na história humana de tanta bestialidade. É só lembrar que essa elite rural foi a última da face da Terra a abolir a escravidão na forma legal – pois na forma ilegal a mantém até hoje.

São posseiros imundos que veem extensões de terra como poder, e nada mais. Preferem o deserto à sombra. Engordam-se à custa do trabalho alheio. Estupram mulheres e crianças. Por isso, não têm pudores de estuprar a terra e derrubar árvores. Para eles, tanto a mulher quanto a terra são receptáculos vazios. O que as fazem a produzir são os arados e seus dinheiros.

Elite rural do Brasil. Manteve a escravidão e é a favor dela. Fez da política o seu curral. Finge ser paternalista e protetora dos mais fracos quando, na verdade, quer desses fracos a lealdade que o diabo gosta. Depois a cobrança é a filha mais novinha do casal, o voto no candidato que escolheu, a benção e a humilhação eterna do chefe daquela família às suas botas.

O Brasil Urbano desconhece esse Brasil Rural que apenas se gourmetizou, mas não deixou de ser aquele que domina o País. O Brasil Urbano acha que manda nisso daqui. Dá vontade até de rir. Fala de defender a soberania de um País em frangalhos contra as intervenções estrangeiras, mas não tem coragem de meter a cara com os parasitas do Brasil Rural. Porque sabe que a linguagem que nesse lado impera é matar ou morrer.

Não existe em nenhum outro país latifúndios como existem no Brasil Rural. Latifúndios improdutivos e frutos de grilagem, que passam entre gerações de uma mesma família como se esses herdeiros de um grande reino. Quem sair da linha e do que o painho fala, morre! Quem protestar contra a ilegalidade, morre! Quem denunciar o trabalho escravo, morre! Quem lutar pela floresta em pé contra a burrice, morre! Quem educar o povo, morre! Quem for contra os interesses, morre! Jagunços, pistoleiros, mequetrefes, ladrões, saqueadores, bandidos das piores espécies se juntam a esses senhores feudais para fazer tudo que seus mestres ordenarem! Por míseros trocados e até por comida! Um boizinho, um leitão, uma casinha. Esses senhores feudais não precisam obedecer às leis. Eles dizem: “Eu sou a lei!”. E quando eles chegam com suas rangers, jipes, hiluxs, até deputado e juiz mijam.

Há muito tempo existe uma guerra no Brasil Rural que o Brasil Urbano desconhece. O último acha mesmo que comanda o país. Eu rio muito dessa prepotência e desse desconhecimento. O Brasil Urbano funda-se em um país que não existe. É como se fosse uma ilha perdida em meio a uma colônia de exploração eterna. A floresta teve de descer do céu em forma de cinzas, fechar o dia e escancarar a noite para esses megalomaníacos da cidade enxergarem que não são nem a brasa do cinzeiro.

Se não fosse assim, não seriam os militantes ambientais os que mais morrem neste País. Não há sentença de morte mais condenatória nessas terras do que defender a terra, a natureza, a vida e as pessoas. Chico Mendes, Doroty Stang, líderes e militantes do MST, caciques de tribo indígenas e seu povo, quilombolas, são esses os condenados a morrer por um ideal de transformação desse país. Não são os cirandeiros das grandes avenidas.

A Amazônia vibra nos seus rios flutuantes que caem do céu nessas terras em forma de outras árvores. Ela regava a Ilhéu, a Rapunzel e a Chorona. Regava o Parque. Enquanto isso, o meu Cerrado concentrava toda essa água em forma de aquíferos e lençóis freáticos como uma grande bacia das águas. Logo essa água estoura na terra e forma os grandes rios que vão desaguar na bacia amazônica. Não só. Vão desaguar na Caatinga, no Pantanal e na bacia da Platina.

Uma coisa eu aprendi com a natureza. Não existe nada separado. Os biomas, a vida, a água, tudo é interligado. O que acontece lá no Acre, no seio dessa grande floresta, com certeza se refletirá em São Paulo – e não apenas no tom escuro do céu. O que acontece aqui com a bacia das águas que é o Cerrado também se refletirá lá. Na natureza, não existem fronteiras e divisas. Ela ensina o homem que ele é apenas mais um no seio da vida.

E para quem não acredita em árvores, mas acha que o computador pode se tornar mais inteligentes que os humanos e que no futuro, dominarão os robôs, um aviso: as árvores sentem! Elas falam e têm espíritos muito mais avançados do que mais da metade dos sapienzinhos da Terra! As centenárias se tornam Irocos, seres avançadíssimos que protegem outras árvores e até crianças, por serem elas o reino do coração puro.

A Ilhéu era um Iroco. Centenária, embalou o meu avô com cinco anos. E depois embalou os seus netos. O que eu diria para um Baobá então? Capaz de viver mais de mil anos? Quem sou perto de uma eternidade como essa?

A Ilhéu era um eucalipto hibrido entre o branco e o roxo de mais de 30 metros de altura. Poderosa, atingia o submundo com suas raízes, verdadeira profundeza da alma como levava eu e meus irmãos até o céu. Cada folha dela era um livro, uma mensagem e um carinho. Seus galhos eram capazes de catar as pipas e entregar para nós. Cantávamos para ela em seu redor. Cobríamo-la de flores do campo. Intercalávamos suas cascas com flores, poesias, dedos e mensagens. Queríamos dormir em sua sombra. Queríamos morar dentro dela. Às vezes, negávamos voltar para a casa, mesmo de noite. E por várias vezes ela nos carregou para o alto mostrando que a vida tinha outros caminhos e horizontes.

Por amá-la, amávamos todas. Tínhamos o mesmo carinho, seja a Pipoquinha com seus galhos tortos, sejam as goiabeiras naves-espaciais atrás de casa, seja o Nicolino, a Rapunzel (uma linda Araucária), seja a Chorona, a Petutinha, a Árvore Solitária, o Estilingão, sejam as anônimas do morro que, quando víamos alguém cortar com sua motosserra, gritávamos e xingávamos até o robô ir embora.

Imagine nesse incêndio a dor dos povos originários das florestas? Não queira saber. Não é nunca igual a dor de você ver a sua casa pegando fogo. Uma casa pode ser reconstruída. Você pode se mudar, fazer outra. Uma floresta, não. Cada árvore é única assim como uma pessoa!

Nos arrancaram do Parque. Nos obrigaram a mudar. A casa permaneceu isolada e vazia. O mato todo tomou conta dela. Os animais a transformaram em toca. A grama subiu onde nunca passou. E na sua frente a Ilhéu. Pouco a pouco, ela fora secando. Não pelo fogo – ela era tão grossa e poderosa que àquele evento ela resistiu bem. É claro que o fogo não deve ter sido nas proporções das queimadas da Amazônia.

Há árvores tão poderosas que mesmo o fogo não é capaz de matá-las. Elas resistem bravamente. Por isso, esse fogo tem que ser muito pungente e muito viral e perto do inferno para destruí-las. Há árvores que sobrevivem através de suas raízes fixas no chão. Sobrevivem porque o fogo apenas consome as suas cascas. Muitas são abrigos para os animais durante o fogo. E há sementes que precisam de calor para germinar de dentro da terra.

Contudo, para tudo há um limite. Muitas não morrem no primeiro fogo, e o homem sabe disso, por isso ateia uma, duas, três, quatro vezes. Ateia fogo em todas as direções. Ateia fogo no momento mais seco esperando explodir. Ateia fogo com explosivos e materiais altamente combustíveis. Ateia fogo para vencer a mata. Ateia fogo para matá-la. E mesmo a mais impressionante das árvores, uma hora sucumbe como os três últimos combatentes: um homem, um velho e uma criança de Canudos!

Morre a árvore. Morrem as árvores. Morrem os animais. Morre a Floresta. Morre o ser humano.

A Ilhéu secou pouco a pouco. Se transformou em um toco gigante. Fundiu-se no tronco. Até apodrecer em pé e se integrar novamente à terra. Eu a vi algumas vezes nesse processo. Meus irmãos também. E todas as vezes em que a víamos assim, morrendo, chorávamos assim que despontávamos no horizonte da estrada e nossa vista a alcançava. Morreu de solidão a nossa árvore! Nossa querida confidente!

E a humanidade morrerá sem saber o que é uma árvore? É tão triste sentir que a maioria dos humanos agora se desligaram completamente da natureza a ponto de achar que tudo que eu escrevi até aqui são bobagens. Incapazes de sentir, eles batem palmas para a própria autodestruição. Indiferentes com o sofrimento da mãe natureza se tornam indiferentes com o sofrimento do outro. Se não lhes comovem as lágrimas de uma índia ao ver sua terra arrasada, nada mais os comoverá. Estão piores que a floresta no chão, porque até nas cinzas tem nutrientes. São verdadeiros paus-ocos.

Eu nunca fui à Amazônia, mas eu sempre pude senti-la através daquelas árvores. Não quero despedir-me dessa majestosa e iroca floresta em vida. Quero que ela viva ainda mais para quem sabe, a humanidade possa sair de seus tocos. Possa deixar de ser a brasa. Possa voltar a ser filha da terra e integrar-se como filha ao planeta que não é por acaso que se chama Terra. Como não é por acaso que somente nosso país tem nome de árvore. Brasil. Deveríamos nos orgulhar disso, disse Paulo Freire. Nome que vem coincidente de brasa pelo seu tronco vermelho que nem sangue. E continuamos a tingir este solo mãe gentil com sangue de gente e de bichos. Agora também com o leite da seiva.

Talvez se negássemos o adjetivo brasileiro. Brasileiro era o nome do explorador português ou filho que vinha para as bandas de cá explorar tudo que há nesse território. Não era o adjetivo natural dos nascidos aqui. Quem sabe se nos denominássemos brasilienses não seríamos muito mais oriundos de seu seio-eu mais profundo?

Eu nunca fui à Amazônia, mas eu garanto que ela reside em mim e escorre em minhas lágrimas, enquanto minhas mãos clamam por justiça. Se elas não podem impedir o fogo, talvez elas possam cavar a terra e plantar. Talvez elas possam escrever uma última clemência! Humanos idiotas, não sabem que são animais que da vida tudo dependem? Todas as suas criações artificiais e tidas como civilizatórias nunca serão nada perto das necessidades mais vitais de água, comida, ar e afeto? Até quando morrem, quem os embala é a madeira, quem os guarda em seu último descanso é a terra. Será que só ali vós descobris que também sois cinza? Será que só ali vós desejais ser gente, ser semente? A semente suspira ais e broto.

Talvez os humanos que conseguirem sobrar às mais intensas catástrofes ambientais desse último capitalismo selvagem, ou dessa colonização mercantil estúpida, possam voltar a ser índios. Pois somente os índios podem nos ensinar a verdadeira resistência a um mundo hostil. Enquanto isso, a terra, a floresta, as matas de cerrado, as águas, os animais, os rios e lagos gritam: humanos? Até quando?

* Adrienne Kátia Savazoni Morelato, mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo e poeta. É colaboradora do Prosa, Poesia e Arte