Sobre o festival “É Tudo Verdade”

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Também esse festival, como o de Gramado, foi realizado on-line, e como disse o coordenador Amir Labaki, nunca o festival atingiu tanto público. Essa mostra é uma das mais respeitadas do mundo pelo seu aspecto cultural. Apresento a seguir o que escrevi depois de ver cada filme. Não consegui ver todos, embora tentasse. Porém penso que pelo que escrevi temos um olhar sobre como está o chamado documentário hoje. O “É tudo verdade” em sua segunda parte aconteceu de 23 de setembro a 4 de outubro de 2020.

Premiados

O Melhor Filme de longa-metragem do 25° É tudo verdade foi “Libelu – Abaixo a ditadura”. O júri deu Menção Honrosa para “Segredos de Putumayo” e “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”. Para curtas internacionais o Melhor Curta foi “Meu país tão lindo”, e Menção Honrosa para “Saudade”. O Melhor curta brasileiro foi “Filhas de lavadeiras” – que também recebeu o prêmio do Canal Brasil – e Menção Honrosa para “Ver a China”.

Win Wenders encerra o festival

Claro que fiquei muito interessado quando vi que “Win Wenders – Desperado” seria o filme de encerramento do festival. Win Wenders é um dos cineastas alemães que mais admiro. Um filme sobre ele, inédito, vindo apenas de exibição em alguns festivais, claro que é fundamental para despertar o maior interesse. Entretanto, esse filme me deu a impressão de um produto totalmente ou quase totalmente desesperado. Sem profundidade. Ele vai de “Paris Texas” até terminar em “Paris Texas” sem ser o que pensamos que deveria ser um filme sobre um cineasta tão instigante quanto Win Wenders. Os dois diretores que o dirigiram, Andreas Frege e Eric Frielder, não deveriam ser os escolhidos. Certamente, para esse trabalho deveria ter sido escolhido um americano como Coppola ou um alemão como Herzog, que poderiam tocar em questões e aprofundá-las. Não tem graça um filme que simplesmente vai falando sobre o biografado de maneira superficial e principalmente rotineira. Sempre alguém está falando e assim a linguagem oral é muito mais importante no filme do que a imagem. Talvez um público menos exigente aceite e ache bom. São duas horas de falação em torno do quase já conhecido. É uma pena. Também não entendo como o próprio Win Wenders não orientou para termos um outro filme. A sequência mais interessante é a que mostra Coppola falando sobre Win Wenders e com algumas interferências deste. Se isso fosse mais longe, poderíamos então ter um bom filme.

Leo Brouwer, músico cubano

Se a gente comparar o filme “Brouwer, a origem da sombra” com a literatura, ele deveria ser classificado como um ensaio e não como documentário. Mas o mundo cinematográfico não tem essa nuance e vemos como um festival excelente como esse 25° É tudo verdade não faz distinções desse tipo. Mas isso é mais uma questão de análise, que se reflete principalmente no público. E o público de cinema no geral tem menos exigências. Enfim, “Brouwer, a origem da sombra” tem produção cubana e foi dirigido por Katherine Gavilan e Lisandra Lopez Fabe. Não tenho muitas informações sobre o filme e o que comento aqui é em função de o ter visto numa única exibição.

Diria, porém, que nesse caso as cineastas tiveram autonomia para realizar, isto é, construir a obra e são realmente as autoras. O músico me parece que não mora em Cuba e detesta a administração da ilha. Ele afirma que não mostra sua música lá, embora também diga que ama o país. E diz para as cineastas que está dando a elas um presente, conceder na realização do filme, pois não precisa do documentário. Enfim, o festival É tudo verdade deste ano está quase terminando com um trabalho que tem duração de 1 hora e 6 minutos, mas que tem uma dimensão excelente esteticamente. Não sei julgar tecnicamente uma construção musical, mas apenas do ponto de vista estético e emocional, e nesse sentido a música  me parece incrivelmente densa. O filme é uma entrevista com o Leo Brouwer que as cineastas ilustraram com a sua música gravada em outras ocasiões. Assim, ele aparece quase sempre em tom sombrio e agindo como se estivesse dirigindo músicos. Na verdade, as cineastas não se negam a comentar o que estão filmando.

Comunicação

Claro que o cinema documental tem uma ligação máxima com a comunicação, mas certos filmes são mais diretamente ligados e penso que foi o que aconteceu com os quatro documentários exibidos no sábado 3 de outubro no festival.

Santiago das Américas ou O Olho do Terceiro Mundo foi realizado pelo brasileiro Silvio Tendler e documenta quem foi o cineasta cubano Santiago Álvarez Roman, com uma linguagem que se assemelha propositalmente à forma criada no cinema de Santiago. Figura da maior importância para Cuba e com influência nos países latino-americanos e na África e Europa. Eu o conheci pessoalmente uma vez em Salvador, durante uma mostra e palestra. Tem uma entrevista de Orlando Sena fundamental para saber quem ele foi.

O Rei Nu – esse filme, dirigido pelo cineasta alemão Andreas Hoessli, é uma reflexão sobre a ação política, referindo-se à revolução que aconteceu no Irã quando o Xá foi derrubado, e na Polônia com a implantação do socialismo soviético. Ele procura mostrar quando isso termina em algo inútil, isto é, não mudando nada para melhorar a vida. É um filme nostálgico e também honesto em suas afirmações. Vale para ser motivo de reflexões.

Influência – a produção é da África do Sul, mas os diretores são ingleses. A temática mostra a ação política de uma grande empresa de comunicação, publicidade e relações públicas, e como isso é cada vez mais fundamental para constituir os poderes nos países, com uma presença totalmente internacional. Mostra por exemplo como uma Margaret Thatcher se relaciona com um Pinochet. E como figuras como Trump ou Bolsonaro conseguem financiamento e ajuda para se elegerem. Realmente, existe uma entrevista com um diretor da firma Bell Pottinger, uma das maiores do mundo e que se implantou na África do Sul. É importante como amostragem de como agem. Embora, para quem acompanha a política, não ser propriamente novidade.

Segredos do Putumayo – Trata-se de um filme brasileiro e o cineasta que o dirigiu, Aurélio Michiles, deve ser do Amazonas, pois se trata de uma denúncia radical contra as monstruosidades que uma empresa inglesa praticava contra os indígenas nas regiões colombiana, peruana e brasileira do Putumayo. Quem fez nos fins do século 19 um relatório sobre a situação foi o irlandês Roger Casement, mas foi punido na Inglaterra com o enforcamento. Para se ver o nível da violência que se fazia contra, primeiro, os negros do Congo, onde ele trabalhava e denunciou, depois na Amazônia. A produção é do francês Patrick Leblant. O filme é muito documentado através de pesquisas.

Carta sobre o Brasil

O nome do filme é “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil” mas na realidade o filme é a própria carta que a família da cineasta Carol Benjamin tinha para apresentar ao público brasileiro. É certamente um excelente documentário e mais uma peça importantíssima e necessária para fazer com que a população brasileira saiba o que foi a ditadura militar de 64 a 85 do século passado. Ele também mostra que o governo da nação hoje infelizmente é uma continuidade através do presidente dessa ditadura. Além do pai da cineasta,  a família teve dois filhos – um deles com 17 anos – presos durante anos. O filme conta através da relação com dirigentes da Suécia como agia a ditadura e inclusive um dos filhos afirma que os órgãos de repressão comandados pelo coronel Brilhante Ustra eram autônomos em sua ação de tortura e morte dos prisioneiros.

Um festival como esse É tudo verdade tem presença fundamental justamente agora em nosso país, quando o presidente da República busca por todos os meios fazer voltar o regime autoritário. São para denunciar ao povo em geral filmes desse tipo que não escondem o que aconteceu. E o fato de ter sido exibido na internet vale mais do que se fosse projetado apenas numa sala especial. A cineasta Carol Benjamin mostrou na apresentação que fez pessoalmente, antes do começo da sessão, o quanto a própria realização do documentário mexeu com sua emoção e de toda a família. Muito bom.

Curtas Inter 1

Na programação do festival tivemos cinco filmes curtas:

1 – Notícias da Capital do Antimônio –  é um filme chinês dirigido por Guangli LIU e é mais entendido pelo título, pois a narrativa mesma é algo solto em que uma equipe de cineastas procura gravar notícias e fazem ensaios para consegui-las, inclusive com os personagens participantes.

Uma Longa Distância – a direção deste é do cineasta Juan Manuel e a produção me pareceu colombiana. A estória é transmitida por alguém para o diretor por telefone, e assim a imagem do filme é toda ela não realista através de bichinhos e outras coisas.

Seu Canto – a direção é de Laura Taillefer Viñas e a narrativa é feita por uma portuguesa sobre a estória de uma cigana que ainda segue as tradições do grupo cigano. Assim, entre outras coisas, ficou um ano sem tomar banho após a morte do marido. A imagem é sóbria e no começo e no final aparece uma bailarina com traje preto e alguns passos. Um belo filme de dimensão poética.

Meu País tão Lindo – um filme polonês dirigido por Grzegorz Paprzycki e o que me parece é que ele pretendeu mostrar a face política da Polônia atual, mas sem deixar clara sua opinião. Ele busca a posição de quem não tem posição. E assim surgem gritos de todos os lados. Na verdade, o que vemos é um país tonto com tudo o que sua população passou nesses anos da segunda metade do século XX.

Sem Choro à Mesa de Jantar – Esse filme é produção do Vietnam e a ação lá se passa. Dirigido por Carol Nguyen, mostra uma jovem do Vietnam que só uma vez beijou sua mãe e nunca beijou o seu pai. Contando a estória para parentes terminam num último jantar e ai todos se abraçam efusivamente como vietnamitas.

Curtas Inter 2

No programa 2 dos curtas internacionais tivemos quatro filmes: O curta iraniano “Asho” que é dirigido por Fereydoun Najafi e conta a estória de um garoto do Irã que mora no campo e cuida de ovelhas, mas o seu sonho é ser ator de cinema. O garoto conhece os filmes tanto do próprio Irã quanto americanos e se compara com os intérpretes de Hollywood e espera ser um deles. O filme narra a estória não só do garoto, mas de uma menina que também quer ser atriz e o garoto mostra seu conceito sobre a mulher. Embora demonstre ser apaixonado pela garota, briga com ela e diz que mulher tem que estar em casa fazendo serviços domésticos. É um filme simples, mas bem humano e agradável de ser visto.

O segundo curta do programa é “This means more”, de produção inglesa e dirigido por Nicolas Gourault. Ele conta de forma sofisticada o que aconteceu quando o Liverpool jogava e os torcedores brigaram e se esmagaram com a morte de 96 torcedores. Há uma busca sem dúvida de explicar por que fatos tão dramáticos acontecem no futebol. Vale como filme curto.

O terceiro curta é do Líbano e foi dirigido por Mahdi Fleifel. Ele fala sobre imigrantes. A narrativa é construída através de um telefonema entre o diretor e uma amiga que conhece a situação dos rapazes que estão no Líbano, sofrendo as pressões que os ‘estrangeiros’ sofrem. Não consegue mostrar algo novo, mas é bem documentado e através do diálogo.

O quarto curta também é bastante humano e se chama “Saudade”. Dirigido por Denize Gallao, que é uma moça nascida em Porto Alegre e depois de adulta vai morar na Alemanha. Os pais continuam em Porto Alegre e as cenas do filme mostram a relação entre filha e pais e quanto a palavra saudade é importante para relacionar o que eles sentem. É um filme que me toca pelo fato de eu também ter uma filha morando na Europa, Paris, Isabela Lins. É um bom trabalho, muito em torno da palavra portuguesa saudade, tentando explicitar o que ela significa. Bom cinema de curta-metragem, falado em alemão.

Filme da Colômbia

O filme se chama “Suspensão” e foi dirigido por Simón Uribe. Ele está concorrendo no 25° É tudo verdade. Foi produzido em 2019, mas se me dissessem que é de 1960 eu poderia acreditar. E isso não porque ele é velho na forma em que foi realizado. Simplesmente porque o drama que ele apresenta existe desde penso os primeiros anos do século passado. E continua da mesma maneira. A estória conta a existência de uma enorme ponte – totalmente moderna – que foi construída na região amazônica da Colômbia, perto de Potumayo. Hoje a ponte se transformou num ponto turístico e as pessoas da região nos fins de semana vão para lá passear. É uma ponte enorme que continuaria uma estrada, mas do outro lado tem uma montanha amazônica que nunca foi mexida. São coisas parecidas com o que aconteceu na região amazônica brasileira quando os militares construíram também estradas que saíram de um lugar e foram para lugar nenhum. É interessante como o cinema documental encontra temas absurdos e que se tornam até fundamentais.

Deixa que Digam

Rubens Rewald é um competente criador de arte e tem consciência de que para mostrar a biografia de alguém é importante não esconder o que se pode considerar como negativo na sua maneira de ser. Isso eu penso pelo que já tomei conhecimento desse cineasta (que penso que é também ligado ao teatro). Então ele mostrou tranquilamente a carreira do Jair Rodrigues e como ela se desenvolveu. Mas soube comentar o fato de que Jair se negou a participar de movimentos de protestos políticos, pois na época ele foi alijado durante anos – durante os anos 80 e 90 – porque então ninguém perdoava. Mas no filme tem uma figura negra – que não consegui saber o nome – que analisa muito bem o aspecto político cultural do trabalho de Jair Rodrigues. Ele nunca participou de nenhum movimento negro também, mas sem dúvida a sua música é expressamente negra. Ele sempre cantou como um autêntico negro. E foi se apresentar na África quando isso não era comum. Quando interpretou “Disparada”, teve a oportunidade de mostrar que era um cantor de excelente nível e não um simples ‘cantor de samba’. O filme “Jair Rodrigues – deixa que digam” enfim mostra a estória e quem era o intérprete não só com material de arquivo, mas utilizando o seu filho mais velho para o representar e que faz muito bem. Também as entrevistas com o irmão e com a mulher são muito bem postas. E as várias outras com companheiros músicos e críticos. A importância de alguém que sabe e que conheceu o artista prevaleceu e assim temos um trabalho correto.

Pão Amargo

Esse filme “Pão amargo”, que vem do Líbano, me lembra vários outros filmes que vi nos anos 60 e 70, particularmente na Jornada de Cinema da Bahia. Só que naquela época os filmes eram brasileiros e eram falados em português e esse agora fala árabe (não sei qual a língua precisamente) e com a mesma intensidade daqueles de 60 anos atrás. Eu sinto uma tristeza grande quando vejo um trabalho como esse “Pão amargo”, mas ele me parece se aproximar daqueles antigos filmes brasileiros: pretende ajudar a mudar o mundo. A grande diferença entre os filmes brasileiros e esse do Líbano é a luz. Nos brasileiros sempre tem muita luz e nesse do Líbano a presença maior é o cinza do inverno. É a chuva caindo nas tendas e inundando tudo. O mal que impera é parecido, pois naqueles filmes antigos já se mostrava que existem responsáveis pela miséria e hoje continua a existir o mesmo responsável: o capitalismo. Na verdade não se pode julgar uma obra como “Pão amargo” pelo que ele é como cinema, mas pelo que ele mostra da miséria que está acontecendo com crianças, mulheres, jovens e velhos e inúmeras pessoas que saem de seu país, no caso a Síria, para não serem mortos e vão para o Líbano onde são rejeitados. “Pão amargo” (que também lembra o filme italiano “Arroz amargo”) foi dirigido pelo cineasta Abbas Fahdel.

Curtas Brasileiros 2

Os curtas brasileiros são separados em programas e os filmes me parecem mais ingênuos do que poderíamos esperar dessa juventude brasileira de hoje. Eu já vi tantos curtas na minha vida, que não consigo deixar de achar ingênuos esses que estou vendo na seleção do 25° É tudo verdade. Entretanto, não posso deixar de afirmar que são verdadeiros. O primeiro foi “Ouro para o bem do Brasil”, dirigido por Gregory Baltz e conta a estória desse programa que foi criado por Assis Chateaubriand para agradar os generais, por um senhor que não sei o nome falando que o golpe de 64 foi uma revolução e assim tudo era maravilhoso, e por Delfim Neto com toda a ironia com que ele fala hoje depois de ter sido Ministro da Economia poderoso lá puxando o saco dos generais. O segundo curta foi “Ver a China”, onde a cineasta Amanda Carvalho documenta a produção de chá na província de Xiamen com um olhar quase amoroso e de quem esteve encantada quando visitou esse país. O terceiro traz uma temática que sempre foi muito querida pelo pessoal do Cinema Novo, e que foi o de descobrir alguma figura especial dentro da multidão. Nesse, a cineasta Mari Moraga acompanha a catadora de lixo Lora e a deixa falar e a senhora realmente fala com bastante desenvoltura. E o que encerra o programa de curtas é “Recoding art”, que apesar de ser feito por brasileiros é todo falado em inglês, documenta uma exposição de ‘arte moderna’ que não consegui identificar onde ela está instalada. A direção foi de Bruno Moreschi e Gabriel Pereira.

Melodrama Chileno

Não entendo por que os produtores do filme chileno “O espião” quiseram incluir esse trabalho no festival de documentários, pois ele poderia ter concorrido por exemplo no festival de Gramado (é melhor que ‘Los fuertes’ que lá passou) ou em qualquer outro festival de ficção e seria certamente muito bem aceito. O filme conta a história em torno de uma casa de repouso, e do trabalho criado para uma pessoa de 80 a 90 anos que lá se hospedasse e  fiscalizasse se uma senhora estaria sendo bem cuidada. É uma questão real e provavelmente tudo isso foi feito e o sr. Sergio Chamy realmente foi contratado como ‘espião’. Porém na realidade do filme me parece que a estrutura fílmica é muito mais de ficção do que documental, mesmo que a parte documental exista. E o sr. Sérgio se mostra excelente ator, mesmo que não seja. O filme é todo rodado numa casa de repouso real com pessoas reais em situação de idosos. E o que o ‘espião’ realmente descobre é que a grande deficiência que a casa tem é da parte dos parentes dos idosos que como trabalham intensamente não têm tempo de visitar ou mesmo de telefonar para seus parentes velhos e lá recolhidos. Enfim, a grande questão é a solidão e não deficiência dos que lá trabalham. “O espião” mostra também principalmente que o cinema no Chile está com um bom desenvolvimento e o nível técnico dos filmes produzidos lá são realmente especiais.

Liberdade e Luta – Libelu

O famoso grupo político LIBELU – Liberdade e Luta foi tema para esse documentário dirigido por um jovem, Diógenes Muniz, que eu não conheço, mas teve apoio para a produção do setor de cinema das Organizações Globo e a Folha de São Paulo deu a capa da Ilustrada para divulgá-lo. A Folha  colocou em destaque na matéria muitos ex-participantes da Libelu que hoje são funcionários e colunistas comentaristas etc dessa Folha. Qual será o maior interesse de fazer esse documentário, além do interesse natural que qualquer pessoa cineasta tem de fazer um filme? Será denunciar como os radicais do tempo da ditadura militar e então jovens hoje são plenos funcionários burgueses? Esse Demétrio Magnoli,  um ex-companheiro que não me recordo o nome disse que ele é mesmo hoje de direita, mas quando faz análises políticas utiliza as ideias que tinha na época da Libelu. Enfim, “Libelu – Abaixo a ditadura” independente dessas considerações é um bom documentário, ágil na sua narrativa formal cinematográfica. E coloca questões nas entrevistas que fazem com ex-participantes, que servem para o espectador analisar uma parte da História política do nosso país durante o período da ditadura. Eles falam mais na Libelu durante os anos 70, mas eu quando fui preso em 64 fui acusado pelo coronel Ibiapina em junho de 64, quando me investigou durante uma manhã e uma tarde, e a acusação mais pesada que me fazia era de que eu era participante da Libelu e na época eu me lembro eu não sabia realmente da existência desse grupo. Mas o coronel Ibiapina devia analisar o pensamento nosso – já minha atuação como comentarista de cinema e de cultura – e sempre tentando descobrir o que havia de trotskista em cada um de nós. O meu tempo de vida me dá hoje oportunidade de ver o passado e interpretá-lo. Para o público jovem não sei para que lado esse filme levará. Talvez o maior efeito seja mostrar que você pode ser radical na juventude, mas sempre mudará quando sentir quando o mercado pode elevá-lo socialmente para ‘uma vida melhor’…

A Televisão e Eu

 “A televisão e eu” é um filme do mesmo diretor de “Ficção privada”, que vi antes e comentei. Andrés Di Tella é, além de cineasta, jornalista com atuação muito viva na Argentina. Como eu disse antes, “Ficção privada” me pareceu uma obra muito bem construída como cinematografia. Em “A televisão e eu” não encontro a mesma dimensão do ponto de vista da expressão  fílmica. Quando ele se concentra mais na história do diretor da televisão, Jacob Yankelevich, o trabalho começa a ter mais unicidade, entretanto durante um bocado de tempo temos praticamente cenas passando para cenas, e esquecendo assim quase a criação de um ritmo mais denso. Todavia mostra que Andrés Di Tella, que já fez cinco longas, merece o destaque que tem no cinema de documentário latino-americano.

Gyuri – Andujar

Outro documentário excelente, “Gyuri” foi realizado pela cineasta brasileira Mariana Lacerda em 2019. É uma volta às memórias da fotógrafa Cláudia Andujar, que durante a 2ª guerra fugiu da Hungria, sua terra, e veio morar no Brasil. Então dedicou-se a um intenso trabalho na região yanomami, na Amazônia. O filme começa com uma entrevista do filósofo Peter Pál Pelbart com Cláudia, lembrando os anos quando seu pai foi levado para Auschwitz e ela então fugiu com sua mãe. Uma segunda parte é então entre os yanomami com Cláudia, conversando com o xamã David Kopenawa. Uma inteligente conversa mostrando a maturidade desenvolvida pelo yanomami. E tem ainda o ativista Carlo Zacquini, que participa das filmagens. Uma bela retomada da questão indígena e com uma narrativa onde muitas vezes fotos são tomadas como quase cenas e são elaboradas com diálogos sonoros e musicais em fortes sequências. Um documentário desses é fundamental para apoiar a luta indígena pela sua não destruição pelos brancos.

A Ponte de Bambu

Um filme que me tocou particularmente esse “A ponte de bambu”, pois documenta a estória do jornalista Jayme Martins, que nos anos 60 foi morar na China com sua família e viveu mais de 20 anos lá. O cineasta que fez o documentário, Marcelo Machado, também é ligado à China, pois é casado com uma chinesa. A entrevista é com a família Martins que é de São Paulo e quem fala não é apenas o jornalista, mas sua mulher e filhos. Numa linguagem tranquila, Marcelo Machado vai mostrando aspectos do país desde os anos 60 para cá e passa por momentos bem conhecidos como a Revolução Cultural e o chamado massacre da Praça Tien nan man. Quando Jayme fala, a posição é sempre de um comunista, mas quando falam seus familiares, principalmente a mulher, temos a palavra de alguém que tem restrições ao comunismo. Eles viveram em Pequim e se hospedaram no Hotel da Amizade e assim tinham uma vida do ponto de vista econômico mais estável que a maioria dos chineses, mas na convivência dos filhos com os chineses o Jayme procurava que eles conseguissem se aproximar o mais possível da forma de viver deles. A mulher afirma que não é comunista, pois não gosta de ser ‘dominada por alguém, que tenha algo mandando em mim’. Ela comenta por exemplo que a Revolução Cultural não era senão uma briga entre grupos do Partido Comunista e ‘não tinha nada de cultural’. Os filhos do Jayme continuaram a conviver com a China quando voltaram para o Brasil, fazem trabalhos que têm ligações com os dois países. Enfim, o importante é que se trata de um documento honesto, bastante crítico e não deixando de mostrar os problemas do país, porém deixando claro o grande salto de desenvolvimento que foi conseguido pelos dirigentes comunistas. Um país de uma população enorme e mais de 400 milhões saíram da linha de pobreza, o que não deixa de ser um caminho para a humanidade. “A ponte de bambu” como cinema é uma produção média.

O Rolo Proibido

“O rolo proibido” tem produção canadense e afegã, com direção do cineasta Ariel Nasr. Tem como objetivo cultural mostrar como toda a produção cinematográfica do Afeganistão foi salva quando o Taliban assumiu o governo no país. Os funcionários da produtora Afeghan Films foram avisados de que eles viriam para incinerar os filmes e então resolveram, apesar da pena de morte que pesava sobre eles, esconder os filmes. Fizeram isso criando uma parede falsa na sede da produtora e deixando fora filmes soviéticos e de outras procedências que entregaram ao Taliban. O documentário é narrado pelo cineasta que foi inclusive diretor da Afeghan Films, e o mais interessante é ver ouvir a emoção que o cineasta transmite. Como ele mostra a importância do cinema para ele e para seus companheiros de trabalho. Essa estória é contada no começo e no final do documentário que tem duas horas de duração. No meio o cineasta conta fatos ligados ao Taliban e também ao governo comunista que dominou o Afeganistão durante um período e com a presença das tropas da União Soviética. Sempre procurando ver como o cinema, apesar de todas as dificuldades, para os cineastas cobriu os acontecimentos do país. É uma produção sem dúvida que conta a História do cinema e isso de uma forma bem particular. 

O que aconteceu com a produção cinematográfica da Afeghan Films se assemelha com o que está ocorrendo agora com a produção brasileira de filmes, que está em São Paulo na Cinemateca Brasileira. O governo federal atual quer destruí-la. Será que vai conseguir ou depois algum cineasta poderá contar uma estória de vitória como aconteceu no Afeganistão?

Boa Noite de Cid

É o primeiro filme da cineasta Clarice Saliby, mas não é um filme de louvação, e se não traz reflexões sobre a figura ou a ação do apresentador Cid Moreira, dá elementos para que o espectador faça a análise e assim saiba quem ele é, independentemente do trabalho de 27 anos apresentando o Jornal Nacional. Na verdade, deixa claro que Cid Moreira não é nenhum inocente e quando prestava serviço para a organização Globo sabia muito bem a quem estava servindo. Se mostrava pelas suas palavras ao documentário alguém que em primeiro lugar busca ou buscou prestar serviço e assim ganhar o seu salário. Diz ele que ‘não tenho política’ e assim declara qual sua política. E assim, quando foi deixado pela Globo encontrou outro trabalho que lhe deu ocupação por seis anos e que também se prestou para formação ‘cultural’ do povo brasileiro. Gravou de forma agradável as palavras da Bíblia. Ele próprio se dá uma destinação especial quando conta a estória de que quase morria queimado na sua sauna. Mas apesar de tudo “Boa Noite” é um documentário bem realizado e muito importante para contar uma parte fundamental da história da comunicação em nosso país.

Filmfarsi

Filme de produção do Irã e do Reino Unido, a direção é de Ehsan Khoshbakht, que não sei mas penso que seja uma cineasta, pois o filme é narrado todo por uma voz feminina. É sobre a história do cinema no Irã, mas o que se pretende mais do que contar a história é analisar a importância do cinema dentro do país. Primeiro se mostra como o Xá foi influenciado e buscou o cinema e depois então como os novos dirigentes olharam para quem fazia cinema. Uma narrativa de cena a cena aproveitando os muitos filmes iranianos. E tem também algumas estórias como o filme que o Xá promoveu e uma cena foi no Palácio onde foram convidadas dezenas de figuras reais dos países vizinhos. A cena foi filmada por Orson Welles e em troca o Governo do Irã apoiou financeiramente dois filmes de Welles, um deles o documentário “Verdades e Mentiras”. São muitas cenas mostrando o comportamento dos personagens, principalmente das mulheres que fugiam da maneira de se comportar até então no país. A cineasta conta que há duas versões para explicar como se deu a Revolução: a primeira é que os marcianos invadiram o país e então fundaram o novo Governo. A segunda é que foram os espectadores do ‘filmfarsi’ que fizeram a Revolução. Sinto falta de uma estória em torno do período quando o cinema iraniano foi tão famoso no Ocidente, inclusive aqui no Brasil e era considerado um dos melhores do mundo. Enfim, se eu for comparar os filmes que vi no Festival de Gramado deste ano com os do festival É tudo verdade, a minha impressão é que na sua quase totalidade os documentários se mostram muito mais aplicados para obter uma autêntica linguagem cinematográfica.

Ficção privada

Gramado terminou e veio o festival É Tudo Verdade, coordenado pelo crítico Amir Labaki. Esse festival também está online pela plataforma Looke em horários estabelecidos. Já vi “Ficção privada”, dirigido por Andrés Di Tella, da Argentina. Um bom filme, mas não pelo tema e sim pela construção cinematográfica. Na verdade, não tem cara de documentário e talvez por isso se chame ‘ficção’, mas não totalmente ficção e por isso ‘privada’. É uma reflexão sobre as cartas de um pai, Torquato, que é da Argentina, para uma mãe, Kamala, que é da Índia. E os filhos são os manipuladores. Essa trama é jogada realmente como bom cinema, isso tanto no plano da imagem quanto na narrativa indireta que acompanha a imagem. Fundamental é que você não precisa gostar do assunto para apreciar o filme.

Colective, melhor filme estrangeiro

Esse filme “Colective” é um documentário da Romênia dirigido por Alexander Nanau. Ele ganhou o prêmio de Melhor Filme entre as produções estrangeiras. A minha impressão é que ganhou o prêmio pela importância do tema que trata: depois de um incêndio numa boate em Bucareste, que se chamava Colective, quando morreram 17 jovens na hora, mas depois entre os muitos hospitalizados morreram mais de 30 pessoas. Um jornalista de um jornal esportivo descobriu que eles não tinham morrido de queimaduras, mas por infecção nos hospitais, então descobriram uma gang que tinha um acordo com uma empresa de desinfetantes e o roubo era extraordinário. Essa firma tinha acordo com 300 hospitais do país. Caiu o Ministro da Saúde e muito mais. Como filme mesmo,  “Colective” não se distinguiria, mas isso talvez porque o que temos é uma certa padronização na técnica. Todos apresentam um bom nível técnico estético. Então o que vale mesmo é o conteúdo. Eu tinha perdido esse filme e vi na exibição extra por causa do prêmio.

Programa 1 de Curtas Brasileiros

Uma surpresa que tive nesse festival de 25 anos do “É tudo verdade” foi quanto a esse programa 1 de curtas. Do ponto de vista do bom cinema, nesse programa não tivemos nada. O primeiro curta foi “ChoVer”, da Paraíba, dirigido por Guga Millet, que é o registro simples e simpático de uma chuva que cai no Cariri. O segundo foi “Movimento”, do Ceará, dirigido por Lucas Tomaz Neves, que pretende ser um filme poético. Acho que o diretor se perde em textos desnecessários, embora tenha curtido algumas imagens belas. O terceiro curta, de Pernambuco, foi “Metroréquiem”,  dirigido por Adalberto Oliveira. É um documentário correto, mas se mostra principalmente um documento de promoção do Metrô recifense. O quarto curta foi do Rio de Janeiro, dirigido por Edileuza Penha de Souza, o “Filhas de lavadeiras”. Ele dá a ideia de que registra uma conversa pedante de mulheres cujas mães as sustentaram com o trabalho doméstico. Difícil acreditar como as pessoas podem ser tão preconceituosas com esse trabalho. E finalmente, “Sem título #6: o Inquietanto”, dirigido por Carlos Adriano, que não sei de que estado é. Pretende ser experimental, mas com pretensões acima do que consegue realizar.

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