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Sérgio Vaz: O Riso do palhaço sem alegria

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Outro dia alguém, não sei bem porque e quando, me disse que a vida
era um presente divino, e que devíamos saber aproveitá-la, e jamais
esquecer de agradecê-la, quem quer que fosse o padrinho. E que por
pior que se apresentasse a vida, estar vivo era um milagre dos céus.
“Deus sempre sabe o que faz”, enfatizou o amigo, filósofo de botequim,
cheio de paz no coração e repleto de alegria artificial na cabeça.


 


Fiquei meio assim com essa idéia de que a vida é um presente, porque
outro dia também ouvi de um mendigo agradecido pela sobras de um
almoço: “cavalo dado não se olha os dentes”, nesse mesmo dia o
vira-lata ficou sem o seu almoço na lata de lixo. As migalhas não
escolhem os miseráveis, elas são presentes do acaso.


 


É preciso estar no lugar certo, na hora certa, nos diz as pessoas que
embrulham os presentes. Mas como os pobres e os vira-latas não têm
relógio, sempre chegam atrasados. Assim como os ônibus.


 


Não sei quem me disse que para entender a vida era preciso conhecer a
palavra de deus, mas como ele nunca apareceu pessoalmente, durante
muito tempo acreditei nos mandamentos dos publicitários. Lembram
daquela profecia?”O mundo trata melhor quem se veste bem”. Pois é, o
mundo dá crédito para quem tem crédito.


 


E aí, se a vida é agora, Vida loka ou Vida besta? Descobrir tem seu preço.
Na verdade acho que a vida é uma das coisas mais engraçadas que o
mundo nos dá, e que por isso mesmo, muitas vezes não tem graça
nenhuma. Não é que eu seja mal-agradecido, e ria menos que devia para
o destino, mas é que tem umas coisas que acontecem…


 


Vai vendo a ironia do destino, tenho um amigo que estava já algum
tempo desempregado, estava vivendo de bicos -sei que tem muita gente
que não sabe, mas viver de bico não tem graça nenhuma. Ele agora faz
bico em uma loja de sapatos, e a coisa mais engraçada é que ele
não é vendedor, nem gerente ou faxineiro, meu amigo é o palhaço da
loja. É. Ele fica na frente da loja vestido de palhaço, fazendo graça
para as pessoas que passam. Parece legal né? Mas não é.


 


Quando eu o vi e reconheci ele até que foi meio divertido, não sei se
porque o patrão estava olhando, mas seus olhos e a maquiagem
mal-feita, o traíram. Estava triste.


 


Puxa, pensei, um homem desempregado não deveria ser palhaço, ser
palhaço não é uma profissão, é um estado de espírito, um dom. Taí, um
presente.


 


Que tristes tempos nós vivemos, em que os circos se foram para o nunca
mais, e os palhaços-trapezistas habitam as lojas de sapatos.


 


Também tentei fingir, e ri um riso falso de poeta que tem a boca
desbotada, para que ele, talvez, se mantivesse digno em seu novo
emprego, para que ele talvez se mantivesse firme na corda-bamba dessa
vida, que mais parece sapato sem cadarço, para os que têm
pés-de-chinelo e as pegadas miúdas que rastreiam o chão duro da
felicidade que nunca vem.


 


Despediu-se de mim com os olhos e partiu arrastando sua tristeza
oculta em outra direção. Ele se aproxima de uma menininha que se
afasta meio com medo.


 


A Mãe, sem-graça, diz: “não tenha medo minha filha, é só um palhaço.”
“Quem dera”, pensou ele.


 


“A Vida não é engraçada, um homem triste a fazer sorrir os outros?”,
disse a voz do destino, segurando um cartão de crédito sem-limites na
mão, e um peito vazio na outra.


 


Sem saber como chorar, ele respondeu com os olhos: “Não mãe, não é só
um palhaço, é um homem sem emprego, desfrutando o presente da vida”.


 


Mas há os desempregados, que cegos, viram atiradores de facas.


 


Dói só de lembrar.