Sergio Lirio: Caetano, a Tropicália e o imigrante congolês assassinado

Naqueles anos 60, cada vez mais distantes, parecíamos fadados a mastigar a cultura ocidental e expelir no lugar algo colorido, caleidoscópico, sensual, livre e humano. Sim, antes de tudo, humano.

Caetano Veloso chorou. Detalhe infeliz, diabólico, que o artista percebeu amargurado: Tropicália é o nome do bar onde o congolês, assassinado de forma brutal por 200 reais, permanecia intocado no pelourinho, comportado, sem atrapalhar o trânsito. Não era isso que o compositor imaginara.

Herdeiro da Semana de Arte Moderna de 22, o tropicalismo anunciava ao resto do planeta que o futuro pertencia ao Brasil. A criatividade miscigenada ensinaria aos brancos e amarelos ruins da cabeça e doentes do pé o significado de felicidade e progresso. Naqueles anos 60, cada vez mais distantes, parecíamos fadados a mastigar a cultura ocidental e expelir no lugar algo colorido, caleidoscópico, sensual, livre e humano.

Sim, antes de tudo, humano. Na Era de Aquário, os trópicos ocupariam o centro do universo, o umbigo do mundo. Nem a burrice dos censores ou a truculência do guarda da esquina teriam a força de deter o curso do destino manifesto. Amanhã vai ser outro dia, avisava um “careta”.

Veio o amanhã, o depois e o depois de depois de amanhã. Os generais ficaram longe do poder por mais de três décadas, a Nova República renovou e destruiu as esperanças e estamos aqui, no século 21, destroçados, aos prantos, sugados pelo túnel do tempo. O senhor que ocupa o mais alto cargo da República cospe farofa no chão e a Tropicália virou um quiosque na Zona Oeste carioca onde o País se exibe de tanga e biquíni: rancoroso, embrutecido, covarde e recalcado.

Um país no qual os linchamentos estão na moda, em que quatro, cinco, dez, vinte, a multidão, embora em vantagem numérica inquestionável, não abre mão de recorrer a paus e pedras para enfrentar um único, solitário e indefeso inimigo. Todo cuidado é pouco. No fim, a fera, massacrada, desfigurada, é exibida em praça pública, diante dos homens e mulheres cordiais. Não somos racistas, repete a turba racista, congenitamente racista, despudoradamente racista, impunemente racista.

Não sei quando Caetano acordou do sonho da Tropicália. Se há muito tempo, se ontem. “Vocês não estão entendendo nada”, ele poderia berrar da janela, como naquele antigo festival. Receberia como resposta as mesmas vaias. Não entendemos nada mesmo. Não temos nada a ensinar ao mundo e somos incapazes de aprender. O monumento não tem porta, a entrada é uma rua antiga, estreita e torta. E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão.

Publicado originalmente na CartaCapital

Autor