São Paulo, 467 anos: Quem matou Mário de Andrade?

Ao ser demitido do Departamento de Cultura, após três anos de uma gestão criativa e transformadora, Mário entrou na fase mais depressiva de sua vida

O escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945), talvez o mais brilhante de todos os paulistanos, foi o responsável, na década de 1930, pela implantação do Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo (embrião da Secretaria Municipal de Cultura). Mesmo sem experiência no serviço público nem vínculo com o grupo político do prefeito Fábio da Silva Prado e do governador Armando Sales de Oliveira, Mário teve razoável liberdade para dirigir o novo órgão.

O contexto lhe favorecia. Com a Constituição de 1934 e o anúncio de eleições para a Presidência da República em 1938, as elites paulistas acreditavam poder, finalmente, dar o troco em Getúlio Vargas e retomar a hegemonia perdida com a Revolução de 1930. “A ideia era fazer da experiência paulista o laboratório de um amplo projeto de alcance nacional, no caso da vitória de Armando Sales de Oliveira na eleição presidencial”, explica Eduardo Jardim, em Mário de Andrade – A Morte do Poeta.

Nenhum daqueles projetos-laboratório foi mais exitoso que o Departamento de Cultura. De 1935 a 1938, Mário liderou uma gestão criativa e transformadora. É fato que suas condições eram privilegiadas, tantos foram os recursos liberados para o Departamento e tamanha foi sua autonomia político-administrativa. Nada menos que 10% da arrecadação em impostos municipais passou a ser destinada à Cultura. Mas o que mais pesou no êxito da gestão foi a audácia e foi a sensibilidade do poeta ora “emprestado” ao serviço público.

Conforme o Ato Municipal Nº 861, de 30 de maio de 1935, o Departamento tinha o objetivo de “estimular e desenvolver todas as iniciativas destinadas a favorecer o movimento educacional, artístico e cultural”. Partiu do escritor Paulo Duarte a indicação do nome de Mário de Andrade para dirigir o novo órgão. “Você vai acabar com meu sossego, m’ermão…!”, brincou Mário, em carta a Paulo Duarte. O convite foi aceito e, em junho de 1935, Fábio Prado nomeou o escritor. Em apenas três anos à frente do Departamento, Mário foi além dos objetivos “oficiais” do órgão e democratizou a cultura em São Paulo.

O Teatro Municipal, fundado em 1911 e voltado até então às elites, finalmente abriu suas portas para setores mais pobres e periféricos da população, graças a uma programação cada vez mais gratuita e acessível. “O público que vai ao Municipal não representa absolutamente o povo da cidade, que elegeu os donos da Prefeitura, pra que esta por preços exorbitantes satisfizesse uma moda da elite. O povo foi abolido da manifestação melodramática oficial da cidade”, justificou-se Mário.

Nos “bairros operários” – Lapa, Ipiranga, Santo Amaro e outros –, os parques infantis garantiam aos filhos dos trabalhadores o acesso à educação, ao lazer, à recreação e à assistência médica, odontológica e social. Embora já existissem parques infantis na cidade antes da criação do Departamento, foi Mário quem transformou esses equipamentos em precursores do ensino público infantil em São Paulo. Crianças em idade pré-escolar frequentavam os parques em período integral, a exemplo das creches atuais.

A Divisão de Bibliotecas foi outro marco. Até então, não havia nem sequer uma catalogação básica do acervo da Biblioteca Pública Municipal – que, de resto, tinha mais livros estrangeiros do que brasileiros. Sob a chefia de Rubens Borba de Moraes, esse quadro mudou. A rede municipal de bibliotecas foi ampliada e se tornou efetivamente pública. São Paulo ganhou uma Biblioteca Infantil, que tinha até uma sala de cinema com filmes dirigidos às crianças e os adolescentes.

O acervo de livros se multiplicou e se abrasileirou. Obras nacionais foram compradas aos milhares. As bibliotecas circulantes rodaram a cidade, em ônibus especialmente adaptados para o armazenamento de livros e a difusão da leitura. Essa modernização exigia profissionais cada vez mais especializados. Por isso, foram criados cursos públicos – os primeiros no Brasil – para a formação básica de bibliotecários.

As “boas novas” não pararam por aí. Instituições como a Discoteca Municipal e a Sociedade de Etnografia e Folclore foram criadas. Com as Missões de Pesquisas Folclóricas, a prefeitura patrocinou a viagem de pesquisadores de São Paulo ao Nordeste, para fazer o registro de elementos da cultura popular. As missões – que percorreram seis estados (Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí) – foram precedidas por visitas do gênero ao interior paulista e à Bahia. 

Na São Paulo daquela época inspirada, não faltavam concursos e projetos de inclusão, excursões e intercâmbio, festas típicas e populares, exposições e seminários, cursos e oficinas. A preocupação aberta com a formação do “proletariado” norteou a concepção de iniciativas como as Casas de Cultura Proletária e os Concursos de Arte Proletária. A convite de Mário, o fotógrafo Benedito Junqueira Duarte, o BJ Duarte, assumiu a Seção de Iconografia e produziu uma monumental documentação visual da cidade.

É impossível dissociar o êxito administrativo de Mário de Andrade de sua paixão genuína por São Paulo, à qual se referiu dubiamente, é verdade, como “Pauliceia desvairada das minhas sensações” ou “agressiva e misteriosa como seus heróis”. Mas o poeta também a chamou, em seus versos, de “enorme cidade”, “minha terra”, “minha noiva”, “comoção da minha vida”, “minha Londres das neblinas finas”, “fonte dum estilo brasileiro”, “berço duma fórmula de arte brasileira”.

“Eu sei de coisas lindas, singulares, que a Pauliceia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível”, escreveu Mário. Telê Ancona Lopez, a maior estudiosa da obra marioandradiana, enxerga aí a “invocação da cidade musa e dama do trovador do século 20”.

A direção do Departamento de Cultura foi a maior contribuição de Mário à sua “cidade musa” – uma espécie de sacerdócio para o qual o escritor não se poupou. “Bateu uma aura de progresso nesse município sofrido, veio um prefeito que topa das coisas de cultura também, incrível!”, escreveu ele, em 1935, ao folclorista Câmara Cascudo. “E me chamaram para dirigir a coisa, imagine só, numa terra em que tudo está por fazer! Tou fazendo.”

Segundo o pesquisador Eduardo Augusto Sena, o Departamento de Cultura foi “pioneiro no desenvolvimento de um arcabouço político e operacional especialmente orientado para a formulação e a execução de políticas culturais no país”. O também pesquisador Roberto Barbato agrega: “Não seria exagero afirmar que, com a experiência do Departamento de Cultura, começa a haver, no Brasil, a noção do que seja propriamente uma política cultural”.

Orgulhoso de suas conquistas, Mário de Andrade alimentou uma imensa gratidão ao prefeito Fábio Prado. Em correspondência ao poeta e amigo Carlos Drummond de Andrade, o escritor paulistano diz que tinha tudo para ser preterido no cargo, já que pesava contra ele a acusação de ser “comunista”. Com o voto de confiança, dedicou-se de corpo e alma ao Departamento.

“Ah, você nem imagina o que está sendo minha vida, uma ferocidade deslumbrante, um delírio, um turbilhão sublime, um trabalho incessante, dia e noite, noite e dia”, declarou Mário na carta a Câmara Cascudo. “Me esqueci já da minha língua literária, a humanidade me fez até voltar a uma língua menos pessoal, já me esqueci completamente de mim (…), sou um departamento da Prefeitura Municipal de S. Paulo. Me apaixonei completamente.”

Porém, em outra carta, três anos depois, Mário definiu o Departamento como “meu túmulo”. Sua saída do órgão municipal foi traumática. Com o Golpe de 1937 – que implantou o Estado Novo –, acabara o sonho paulista de voltar ao poder ainda naquela década. Em 1º de maio de 1938, o interventor federal de São Paulo, Ademar de Barros, nomeou Prestes Maia para a prefeitura paulistana, no lugar de Fábio Prado. A fase virtuosa do Departamento de Cultura estava com os dias contados.

Avesso às políticas públicas culturais, Prestes Maia esvaziou e enfraqueceu o Departamento. Poucos dias após sua posse, o prefeito demitiu – e, sem perceber, “matou” – Mário de Andrade, que entrou na fase mais depressiva de sua vida. Tomado pelo desgosto, Mário aceitou uma proposta de Drummond e partiu para o exílio no Rio de Janeiro, onde trabalhou na Universidade Federal (UFRJ). 

A adaptação no Rio foi dura. Mário sentia saudade da família, dos amigos, dos alunos e, sobretudo, de São Paulo. Sem conseguir se recuperar emocionalmente, afundou-se no álcool e nas drogas. “A sua expulsão do Departamento de Cultura foi uma sentença de morte. Mário se suicidou aos poucos, matou-se de dor, revolta e angústia”, declarou Paulo Duarte. Em 1942, o escritor regressou a São Paulo. Mas, com a saúde debilitada, morreu precocemente, em 1945, aos 51 anos.

Em 2021, esta cidade tão marioandradiana, a “São Paulo de Andrade”, chega a seu 467º aniversário – e a criação do Departamento de Cultura completa 86 anos. Até hoje, infelizmente, não conseguimos produzir gestores e gestões culturais à altura do que Mário de Andrade realizou há mais de oito décadas.

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