O louco, o camelo e o comunista

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Em todas as cidades existem os loucos, os loucos doidos, especialmente nas grandes metrópoles. São figuras que se tornam conhecidas, populares, queridas, e às vezes, inconvenientes. Em Salvador aconteceu um episódio curioso que envolveu esse grupo de amigos da população. Uma conferência internacional de chefes de estados foi convocada para a capital da Bahia e para os organizadores do evento era necessário dar uma aparência de “civilidade” ao ambiente.

Para tanto, entre as medidas, que passavam por limpeza e segurança como prioritárias, uma outra apareceu como importante: retirar os malucos que perambulam pelas ruas, vielas, becos e praças. Não cairia bem que a nata da elite de países prósperos se deparasse com figuras tão esquisitas circulando, quando nas nações mais avançadas elas estão recolhidas em clínicas especializadas.

Essa “limpeza” dos malucos não foi oficializada. As pessoas que circulam pelo centro da cidade ficaram surpresas com o desaparecimento daquelas companhias agradáveis que transitam sempre alegres e solícitas. A ideia que vinha à cabeça era de que poderiam ter sido assassinadas, internadas, terem ido embora pra outro local etc. Mas num foi nada disso.

Passados seis dias da cúpula, apareceram dezenas de birutas de volta pela Avenida Sete. Detalhe: todos eles eram doidos desconhecidos, eram outros loucos que nunca tínhamos visto. O que ocorreu? É que o poder público recolheu as pobres criaturas em todos os bairros e na hora de devolver, despejaram de forma aleatória, ou seja, não se preocuparam em devolvê-las para os locais de origem, um completo desrespeito àqueles que merecem apoio e solidariedade.

Eu costumo dizer que os escritores adoram contar uma história dentro da história para nos distrair e render páginas. Num sou escritor e o caso acima num é a história que vou contar – é só a introdução. É sempre bom uma entrada num jantar em restaurantes de luxo e um lubrificante na hora do esquema pesado na dança de corpos. Bem, passaram-se uns seis meses até que os pirados se reorganizassem e cada qual encontrasse o seu espaço de origem, o que, convenhamos, num é tarefa fácil para um lelé da cuca.

Agripino foi um desses que sumiu e reapareceu. Disse a mim que quando dormia em um estacionamento na Avenida Sete  fora recolhido na madrugada por um caminhão que o levou a um abrigo clandestino em Cajazeiras, bairro da periferia,  e três dias depois da reunião citada fora despejado no subúrbio ferroviário.

As versões dão conta de que Pino era bancário e teria ficado louco como outros de sua categoria, muitos dos quais encerram a carreira trafegando das clínicas de tratamento de alcoolismo para os manicômios e cemitérios. Ele era frequentador assíduo das passeatas que saem do Campo Grande e seguem à Praça da Sé, sempre pronunciando as palavras de ordem dos grupos que as puxam, sem qualquer preocupação com o conteúdo ideológico. Seja de direita, esquerda, centro, ele num tá nem aí, gosta mesmo de estar no meio do povo agitando as bandeiras postas com o mesmo entusiasmo.

A propósito, se um militante de cinquenta anos de idade em Salvador somar a quantidade de vezes que participou de passeatas no percurso citado, ele vai concluir que fez várias maratonas, pois naquelas ruas não passamos um mês sem estar protestando ou apoiando alguma coisa. No meu caso dá pra dar uma volta ao mundo de tantas que participei. Numa dessas passeatas eu sugeri aos organizadores que atualizássemos as palavras de ordem como forma de atrair mais manifestantes. Uma delas, que bradava por “arroz, feijão, saúde e educação”,  eu propus – e foi aprovada –  passar a ser “salmão, faisão, uísque e camarão”, o que fez com que nossas fileiras se ampliassem consideravelmente no trajeto.

Agora entra na história um comunista, cozinheiro e cachaceiro, membro do CCC. Alguns teóricos acham que um socialista autêntico é aquele que une teoria e prática. Dizem que militância ou estudo acadêmico dissociados um do outro não caracteriza um autêntico revolucionário. Everaldo Augusto, que também é professor de francês,  é um cara que une com maestria esses dois fundamentos do marxismo. O cara tem uma capacidade impressionante de unir originalidade e criatividade ao dirigir a massa de trabalhadores ou qualquer outro segmento com os quais lida – do mesmo porte de Álvaro Gomes, ex-deputado do PCdoB, outro comunista também muito sagaz e espirituoso. Ambos são bancários e ex-presidentes do Sindicato dos  Bancários da Bahia.  

O destino se encarregou de unir Everaldo e Agripino num grotesco episódio. Os americanos decidiram invadir o Afeganistão após as torres gêmeas ruírem deixando quase três mil mortos –  uma quantidade de pessoas que é minúscula se comparada à mortandade promovida pelo império do mal mundo afora. Em vários pontos do planeta foram organizadas manifestações pela paz, e  como não poderia deixar de ser, aconteceria na Avenida Sete em Salvador .

Everaldo, presidente da Central Única dos Trabalhadores na época, preparou um ato de protesto que poderia ocupar grande espaço na imprensa, repercussão essa que era comum nas manifestações que ele organizava, sempre com perspicácia. Ele descobriu um camelo num circo em apresentação no bairro da Boca do Rio e fez a leitura instantânea: uma passeata com um camelo e contra a guerra seria tudo de bom. Só não estava nos planos dele que nosso maluco beleza, que também tem criatividade, estaria presente e poderia aprontar alguma.  

As manifestações tradicionalmente são convocadas por  carros de som e Agripino, sempre circulando pelas áreas centrais, ouvia, e lá marcava presença. Logo na saída da caminhada, Pino ficou invocado com aquele animal gigante, só visto por aqui na TV, e não se desgarrou das proximidades do bicho. Ficou numa felicidade infantil, infantil que era. Everaldo comandava a galera no microfone atacando duramente o imperialismo norte-americano e defendendo a soberania dos povos. O carro de som seguia à frente e o camelo logo atrás. Pino, atrás do camelo, que era puxado por um instrutor.

Pino começou a dar tapinhas no camelo, que se mostrava incomodado, e como reação, parava de andar, o que atrasava a passeata. Everaldo, lá na frente, soube que estavam “agredindo” o animal e sem saber que era coisa do maluco começou a discursar:

 – Eu exijo respeito ao animal; estamos aqui numa manifestação séria e não vamos admitir perturbação desse jeito”.

 O doido, que não prestava atenção em nada, a não ser na novidade da rua, passou para a frente e começou a abraçar o pescoço do transportador de cargas. E Everaldo aumentou o volume: 

– Eu quero repetir que nossa luta é em defesa da soberania dos povos e também dos animais, que são vítimas das bombas criminosas despejadas no Afeganistão pelos assassinos ianques. Não aceitaremos provocações ao camelo. O camelo é nosso aliado contra o imperialismo agressor.

E assim a caminhada seguia: Pino cercando o animal por todos os lados, o abraçando, acariciando, cheirando, beijando, numa  alegria contagiante. Por outro lado, Everaldo discursando contra as guerras e em defesa dos animais, até que ficou irritado e ameaçou mandar chamar a polícia para retirar o “provocador” da manifestação, provocador este que seria um “direitista infiltrado” entre os presentes.

A passeata que seguiria até a Praça Municipal, mas  por decisão do irritado Everaldo, se encerrou antes, no Largo do São Bento,  com um ato político onde lideranças políticas fariam seus discursos. Foram dezenas se revezando no microfone enquanto Pino se divertia. Você deve saber que o animal do deserto acumula água num reservatório para que em momentos mais difíceis ter o precioso à disposição. Não era o caso deste, que vinha bebendo água no cortejo do início ao fim, servido pelo funcionário do circo.

Enquanto os oradores gastavam saliva iria acontecer uma situação imprevisível, aliás, não tão imprevisível assim. O camelo iniciou um mijão assustador. Você já viu esse bicho mijando? Rapaz, sai um jato tão grosso que se parece com o da mangueira do corpo de bombeiros. E o mais curioso é que o líquido fétido dura um tempão jorrando, o que no caso, formou uma poça em meio aos manifestantes, que iam se afastando da atração, meio enojados. Neste momento, Pino se aproximou da bica de xixi e … e, santo deus, começou a lavar as mãos.

Em meio a um princípio de confusão, Everaldo pegou o microfone de assalto e tentou retomar as rédeas do camelo, aliás, da situação. 

– Quero repetir que estamos aqui numa manifestação internacionalista, em apoio ao povo afegão, e a seus símbolos, como seus animais, que assim como nossos jegues, são fontes de emprego e renda para parte de seus trabalhadores. Não admitimos, portanto, que alguém apareça aqui sem ser convidado e ouse lavar as mãos com a urina de uma das referências daquele sofrido povo irmão. Chega de desrespeito! Aqui num é lugar pra brincadeira de mau gosto.

Nisso, a imprensa que registrava enfastiada as repetitivas e cansativas falas, se voltou para cobrir a bizarrice que ali acontecia. Quando nos demos conta, o doido sorridente que esfregava os dedos em xixi estrangeiro, pensando que fosse um chuveiro público, tirou camisa, calça, ficando de cueca, e… pense no inimaginável… entrou debaixo do jato, pensando estar a aliviar ali mesmo o calor infernal que infelicitava a todos. Já passavam de cinco minutos de despejo de urina e Pino, com o corpo encharcado, incluindo cabelo e barba, quando Everaldo suspendeu a fala dos restantes e deu por encerrada a “vitoriosa” manifestação. Neste momento, o pitoresco já matava a sede bebendo mijo do animal.

E Everaldo me disse no canto fulo da vida: 

– Porra, Urubu – ele me chama usando esse insólito apelido -,  a gente dá uma sacada dessas pra aparecer um filho da puta desses pra estragar tudo. 

Nos jornais do dia seguinte o que saiu sobre o assunto foi que um louco foi visto tomando banho  e bebendo xixi de camelo no centro da cidade. Nada de guerra, de invasão, de solidariedade.

Everaldo ficou mais puto ainda. Com razão. 

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