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Ó Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, chega a 120 Carnavais 

Em 1899, quando compôs Ó Abre Alas, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a grande Chiquinha Gonzaga (1847-1935), já era considerada, aos 52 anos, uma artista exímia e uma mulher libertária. Na música, destacava-se como compositora, pianista e maestrina. Na sociedade, sobressaía pela defesa de causas como o abolicionismo. Mas foi ao gravar Ó Abre Alas, há 120 anos – ou melhor, há 120 Carnavais –, que Chiquinha cravou seu nome em definitivo na cultura brasileira.

Por André Cintra

Chiquinha Gonzaga

Nascida em 17 de outubro de 1847, num Rio de Janeiro ainda sob os primeiros anos do reinado de Dom Pedro II, Chiquinha parecia fadada ao convencionalismo social do século 19. De família rica e tradicional, integrou um ambiente em que, por regra, as mulheres não tinham vez nas decisões da casa, na definição dos costumes, muito menos nos destinos da cidade ou do País.

Chiquinha era filha de José Basileu Neves Gonzaga e Rosa Maria de Lima Gonzaga. Deve-se à socióloga e pesquisadora Edinha Diniz, biógrafa da artista, a revelação de que os pais dela, tão zelosos quanto à aparência, também escondiam um segredo constrangedor à sociedade imperial: eles só se casaram – e em sigilo – após 17 anos de relacionamento. O motivo: José Basileu, militar de prestígio, queria esconder as origens de Rosa, uma descendente de escravos alforriada no nascimento.

Foram os pais que, ainda cedo, apresentaram o piano à filha, despertando nela uma paixão instantânea. Com 11 anos, Chiquinha já começava a compor. Mas aos 16, já completamente envolvida com a música, foi obrigada a casar-se com o oficial da Marinha Mercante Jacinto Ribeiro do Amaral, dono de extensas propriedades rurais. O matrimônio pouco durou. Quando o marido – expressão da mentalidade machista e conservadora da época – obrigou-a a escolher entre ele e o piano, a jovem artista não titubeou: “Senhor meu marido, fico com o piano. Não posso viver sem harmonia”.

Choro

Imersa na música, Chiquinha passou a frequentar as noites cariocas, por influência do flautista Antônio da Silva Calado. A um público essencialmente masculino, apresentava composições próprias ou de outros autores com a mesma desenvoltura e satisfação. Ali, nas festas boêmias e nas rodas de chorões, estava sua razão de viver. Não era difícil prever que seu segundo casamento– desta vez, com um engenheiro de ferrovias – fracassaria como o primeiro. O casal teve três filhos, mas a rebelde Chiquinha não tinha tempo para a família.

Se a primeira separação foi marcada pelo escândalo, a segunda não ficou atrás. Era 1877. Denunciada à Igreja Católica, Chiquinha foi julgada, aos 29 anos, pelo Tribunal Eclesiástico do Bispado do Rio – que a condenou à “separação perpétua” por abandono do lar e adultério. Os pais da artista, desmoralizados, não quiseram mais vê-la.

No mesmo ano, enquanto dava aulas particulares de piano, Chiquinha lançou seu primeiro sucesso, Atraente, uma polca feita de improviso numa roda de choro. Integrada como pianista ao grupo Choro Carioca, ela é convidada a tocar em festas e mergulha de vez na vida boêmia. Um de seus primeiros e mais importantes parceiros musicais foi Joaquim Callado. O choro, um dos primeiros gêneros genuinamente brasileiro, é fruto da união entre os dois.

Mais à frente, Chiquinha compõe músicas para o libreto Viagem ao Parnaso, de Artur Azevedo. O trabalho não foi aceito pelo simples fato de ter sido elaborado por uma mulher. Assim, a estreia de Chiquinha no teatro só ocorreu em 1883, ao musicar a peça Festa de São João. Anos depois, tornou-se pioneira no uso do violão em apresentações teatrais.

Nacionalismo

Sua produção musical tinha uma inconfundível marca nacionalista e inovadora, que se estendia a seu ativismo. Aos poucos, não dava mais para separar a carreira artística e a atividade social de Chiquinha. Abolicionista e republicana, a compositora vendia suas próprias partituras em prol da Confederação Libertadora. Numa dessas vendas, em 1888, pouco antes da Lei Áurea, alforriou o escravo José Flauta, que era músico.

A vida de Chiquinha Gonzaga voltou a virar do avesso em 1899. No plano pessoal, ela se apaixonou por João Batista de Carvalho, um músico aprendiz de apenas 16 anos – 36 a menos do que a artista. O romance durou até a morte dela, em 1935. De início, para não expor o amante, Chiquinha chegava a apresentá-lo como seu filho.

É também em 1899 que Chiquinha compõe a marcha-rancho Ó Abre Alas, um marco inaugural da música popular brasileira e das marchinhas de Carnaval. Segundo o jornalista e crítico musical Nelson Motta, ranchos e cordões eram “os principais animadores do carnaval de rua no Rio do fim do século 19, equivalente aos blocos que, hoje, voltaram a cresceram em progressão geométrica tomando a cidade. O cordão era a opção para quem não podia frequentar os salões e os bailes da sociedade – ou para quem sabia que a folia verdadeira estava na rua”.

Chiquinha morava no Andaraí, em casa próxima à sede do cordão Rosa de Ouro. Num dia, sentada junto ao piano, ela ouviu um som percussivo e animado que vinha do ensaio do grupo, além da voz dos cordões a gritar em coro: “Abre alas”. Nasceu, assim, um clássico do cancioneiro nacional:

Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar

Eu sou da Lira
Não posso negar
Eu sou da Lira
Não posso negar

Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar

Rosa de Ouro
É que vai ganhar
Rosa de Ouro
É que vai ganhar

Com o sucesso de Ó Abre Alas entre seus membros, o cordão Rosa de Ouro incorporou a marchinha a seu repertório. Cinco anos depois, a própria Chiquinha Gonzaga adaptou a canção para o teatro, tornando a música reconhecida em todo o Rio de Janeiro. Das mais de 2 mil composições de Chiquinha Gonzaga, nenhuma fez mais história.

A artista, aclamada na música e feliz no casamento, não parou de compor, nem de ousar. Foi a primeira compositora, por exemplo, a levantar a bandeira dos direitos autorais. Em 1917, fundou a Sbat (Sociedade Brasileira de Autores e Artistas de Teatro). Depois de morrer, em 28 de fevereiro de 1935, aos 87 anos, Chiquinha virou tema de livros, peças, samba-enredo e minissérie.

Em 2012, a presidenta Dilma Rousseff oficializou 17 de outubro – a data do nascimento de Chiquinha Gonzaga – como o Dia Nacional da Música Popular Brasileira. Em termos de pioneirismo, não poderia ter havido escolha mais apropriada.