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Mário de Andrade, a “moléstia-de-Nabuco” e a dependência cultural 

O intelectual americano sofria, na história colonial, uma dupla aflição: a de ser cônsul da cultura metropolitana e a de ser parte de cultura subalterna. Entre 1900 e 1930, a dependência era explicada como problema político. A explicação do atraso recai sobre fatores como raça, clima, miscigenação ou características do colonizador.

Por Valdemir Klamt*

Macunaíma, o "herói sem nenhum caráter, na ilustração de Pedro Nava

Em consequência dessa atitude, legitimava-se a incapacidade de alterar a realidade e de criar projetos culturais alternativos. O dado nacional que preocupa os modernistas nesta teoria é analisar confrontando o local com aquilo que vem de fora, medindo o particular pelo geral, a cidade do interior com o Brasil, o Brasil com o mundo.

A despeito da dependência cultural, Joan Rosalie Dassin lembra que a expressão artística brasileira sempre dependeu do processo de transferência cultural ou de pressão cultural estrangeira. No entanto, mesmo com a importação de fórmulas, não houve impedimento para adaptá-las ao sentimento nacionalista. A imposição cultural evoluiu para a adaptação cultural, as formas importadas para a expressão autêntica.76 Em O Movimento Modernista, Mário de Andrade esclarece que o espírito do movimento modernista e suas modas foram importadas diretamente da Europa.

O Brasil importa a sua forma de viver e pensar. A colonização teria produzido três classes de população brasileira: o latifundiário, o escravo e o homem livre. A relação dos dois primeiros é clara. O homem livre que era uma grande parcela da população vivia do favor. Roberto Schwartz defende que, “adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente ‘objetiva’, para o momento do arbítrio que é da natureza do favor”.

Não havia nada melhor para engrandecer as pessoas que as ilustres ideias do tempo, europeias. O problema não é o ornamento do saber das culturas ibéricas, mas a dissonância que provocaram quando transpostas para o Brasil. A panaceia e a vergonha eram cúmplices e garantidas pela prática do favor. Para Schwartz, teria sido o Modernismo e outros movimentos posteriores que nos fizeram considerar o anacronismo, os disparates do momento da colonização. Neste as ideias liberais, ao mesmo tempo que eram impraticáveis, também eram indescartáveis.

Schwartz esclarece que “ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe ideias europeias, sempre em sentido impróprio.” O escritor registra o processo social do ambiente onde vive e também aceita, quando não consciente, o deslocamento de ideias. Para não deixar nenhuma dúvida, Mário de Andrade afirma: “Não só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes já academizadas”.

O europeísmo era para Mário de Andrade a eterna necessidade que os brasileiros tinham de beber em fontes europeias. Era a “moléstia-de-Nabuco” que fazia com que os intelectuais vivessem com o corpo no Brasil e o espírito na Europa: “Moléstia-de-Nabuco é isso de vocês andarem sentindo saudade do cais de Sena em plena Quinta da Boa Vista […]. Estilize a sua fala. Sinta a Quinta da Boa Vista pelo que é e foi e estará curado da moléstia-de-Nabuco”. O mesmo Mário que critica a “nossa idiotíssima civilização importada”, afirmou um ano antes, em 1930:

“Não me parece que haja no mundo atualmente ninguém que precise mais que o brasileiro duma base física bem germânica pro seu espírito. […] O dia em que fundearmos a nossa nau Catarineta desarvorada e luminosa, no porto sossegado e habitado pela ciência alemã no original […], então, gentes do mundo, vocês verão de quantos paus se faz esta canoa.”

Uma das manifestações mais notórias da moléstia-de-Nabuco é o texto central (física e criticamente) de Macunaíma: a carta pras Icamiabas. Nela Mário transpôs frases de Rui Barbosa, de Mário Barreto e de cronistas coloniais. Macunaíma deixa a preguiça e, numa carta de muito fôlego, exercita a dualidade linguística da língua portuguesa:

“Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a essas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou por certo não foi das menores tal originalidade linguística. Nas conversas utilizam-se os paulistanos de um linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será grata empresa vô-lo ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta as asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com impericível galhardia, se intitula: língua de Camões!”

Para Mário de Andrade, o maior problema do Brasil era o acomodamento da sensibilidade nacional com a realidade brasileira. Realidade que não é só feita de ambiente físico e dos enxertos de civilização – mas da função histórica e social da humanidade. Para Mário, seríamos uma raça no dia em que nos tradicionalizássemos em uma nação quando enriquecêssemos a humanidade com um contigente original e nacional de cultura.

O modernismo brasileiro era uma ajuda para que esse dia se tornasse possível na opinião de Mário. O Modernismo modifica o cenário artístico brasileiro. A síntese das teses centrais de Mário de Andrade e de sua concepção de modernismo estão na função histórica e social. Estão nele a busca da tradição, a fusão do passado com o presente, a busca do universal no particular e autêntico, o descobrimento do Brasil como síntese e o gesto autoral se projetando sobre a memória nacional. O material para a criação dos modernistas foi a realidade da vida brasileira. É isso que está implícito no discurso de Mário de Andrade.

* Valdemir Klamt, mestre em Literatura e doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), é escritor e gerente de Educação do Sesc. Este texto foi adaptado de um capítulo de sua dissertação de mestrado, O Intelectual Mário de Andrade e Suas Políticas Culturais (2003).