Marco Albertim: Reencontro de goianenses

“Ninguém quer falar da decomposição do capitalismo em crise; não nos interessa. Não interessa a Beto Gadelha, capitalista provinciano, sem a memória da bucólica Goiana. Não podia ser de outro modo. Ele destruiu o Diva, pracinha com quatro bancos, centro da cidade.”

Sábado último, cerquei-me de amigos da adolescência; uns mais, outros menos; amigos, claro, todos ligados à mesma memória do passado. Não são tão velhos quanto eu, dependente do traço literário para pôr a nu o que me ocorrera há 50 anos. A memória afetiva é excludente. Privilegiamos quem nos cercou de um carinho nada fingido, inda que, na descoberta dos anos, nos tenha votado atenção com limites; atenção a mando de uma etiqueta senhorial, impositiva, coberta de modos polidos. E excluímos quem, por um nada, desviou-se de nosso rumo, rindo franco, cheirando a um patchuli barato, de feira. Foi assim que nunca mais vi Maria José, pequena feito um botão, pernas curtas, com uma letra caprichosa sobre a banca puída da escola de dona Nair – a escola tinha um nome pomposo, sobressaiu-se o nome da diretora por seu vozeirão de autoridade.

Maria José não cresceu tanto, criou corpo sentada no banco da escola e no da feira, onde a família comerciava panos baratos. Não era de falar, como eu; nem de levar bolos na palmatória de dona Nair… Como eu. Reencontrei-a 20 anos depois, muda, quieta, sentada num banco de madeira atrás do balcão de uma loja com fartura de roupas; de sua propriedade. Maria José soube crescer.

Sábado passado ninguém citou seu nome. Nossa memória a excluiu. Gozava de boa saúde, Maria José; está viva… Ou deve estar viva, como minha memória, querendo o perdão, quer. Esqueceu-nos, ela, com razão.

Como a memória também é chorosa, volto ao ruidoso reencontro dos amigos. Para quem não tem o perfil de Gutemberg, não o da imprensa, mas o do beco Domingos Ramos, começo pela jactância da barriga. Ele não a ostenta como um burguês ocioso, tem-na pressionada pelo cinturão; cobre o ventre, o tronco, com camisas de puro algodão, em geral claras como a pele do rosto, como o azul dos olhos. Seu rosto é quadrado como o retângulo dos óculos. É inquieto feito um moleque, não sossega enquanto não vê o interlocutor irritado. Digo-lhe que já namorei sua irmã, mas que não passou de entrelaçamento de mãos. “Devia ter entrelaçado mais embaixo”, diz-me o gordo Gute, debochado, evasivo. A memória encolheu, a minha memória encolheu, como a mão que usei para segurar na mão de sua irmã.

Seu pai fora amigo do meu. No enterro do meu pai, pediu que abrissem o caixão para olhar o amigo pela derradeira vez. Disseram-lhe que sim. Quando o caixão, na frente da gaveta mortuária, pronto para sumir de vez, ninguém o acudiu no pedido. Lembrei o pedido, não fiz nada. À frente da cerimônia estava a viúva, minha madrasta, seus três filhos. Não fiz nada.

Como os miasmas do cemitério não fazem bem à memória, volto à reunião de amigos. Josué Sena não é o que se pode chamar de comensal de esbórnia, embora tronco e papada deem conta de um estômago quituteiro. É juiz de toga, não um vetusto juiz como se vê em molduras antigas, inda que tenha um porte clerical. Cultua a poesia, pratica-a como um velho garimpeiro catando pepitas. Memorialista, contou-me que padre Fernando dos Passos, meu padrinho de batismo, fora um glutão. Sentou-se, o padre, à frente de uma mesa com fartura de comida. Casa de Albino Pimentel, industrial tecelão, o primeiro de Goiana. Instigados, padre Fernando e Lauro Raposo, médico, comeram disputando o título de comilão. O padre, suando sob a batina preta, comeu três galinhas assadas, luzentes; parou porque o médico também parara. Padre Fernando, juntei ao relato de Josué, tinha o costume de andar com chocolates, bombons, no bolso da batina. A voracidade, por certo, não lhe dera remorsos; se disputara com um médico, tinha o aval da receita.

Contei a Josué que sua irmã fora objeto da admiração de Beto Gadelha. Uma vez, limpando os vidros da janela da casa, Tadora foi vista por Beto do outro lado da rua. Pensou, ele, que ela estivesse acenando para ele; não teve dúvida: acenou para ela também. O gesto perdeu-se no ar, mas não na nossa memória. Beto está gordo, sonolento, é empresário próspero, foi prefeito, deputado e persegue outra cadeira na Assembleia Legislativa.

Josenildo tem um nome longo. Chamam-no Nildo, tem a idade de Beto Gadelha: 61 anos. É difícil falar com ele pelo telefone; gagueja, troca as sílabas e não se dá por vencido quando o criticamos. Não é lamuriento, mas mantém o costume de cantar músicas chorosas, remelentas. Crê-se um purista por isso. Tenho vontade de dizer-lhe que, de todos nós, é o único que se conserva preso à cultura de bordel. Não entenderia, ele não entenderia.

Sebastião Gadelha permanece tão moleque quanto antigamente. Não para de rir, fala como um camelô, baba como um cão sedento. Lembro-o de quando, no Cine Nacar, fui empurrado por ele em cima de Zefa Deião – Zefa Deião, hermafrodita, usava botas, vestia camisa e vestido brancos, com um chapéu de feltro na cabeça. No cinema, tinha o lugar reservado para si. Era negro, com voz nasal, um monte de cravos sob os olhos. Tínhamos medo dele. Fui jogado em cima dele, vi seu rosto junto do meu, fiquei apavorado. Ele tirou de sob a camisa uma barra de ferro redonda, tamanho de um palmo; ferro preto como o seu rosto. Gritei, corri, pensei que fosse morrer. Sebastião, sinistro, ainda hoje faz pouco de meu terror.

O mercado está cheio, alguém canta, declama, somos uma massa disforme disposta a esquecer a crise nos copos de cerveja. Luizinho, solícito, traz-nos um prato cheio de queijo em cubinhos; cobriu-o com azeite, orégano. Juntou-o às cervejas na mesa. Por certo se inspirara nalguma foto de publicidade. Enganou-nos direitinho.

Ninguém quer falar da decomposição do capitalismo em crise; não nos interessa. Não interessa a Beto Gadelha, capitalista provinciano, sem a memória da bucólica Goiana. Não podia ser de outro modo. Ele destruiu o Diva, pracinha com quatro bancos, centro da cidade. Conversávamos sobre política, mulheres, bailes; confessionário público, sem rezas, a custo zero. Destruiu para deixar a rua Direita com o trânsito livre, converteu-a numa pista de corridas. Destruiu o Ponto Chic, nunca chic, por isso mesmo chic. Ali jogávamos a milhar que sonháramos, comíamos à noite cachorro-quente. O Ponto Chic era propriedade da família dele. Depois, a rua da Feira foi coberta por toldos enormes, estruturas de ferro, cobertas de náilon. Já não mais por Beto. Osvaldo Rabelo Filho, prefeito seguinte, não respeitou a arquitetura da Igreja da Misericórdia, de 1726.

Também esquecemos que Goiana é uma cidade sitiada pelo canavial de duas usinas; num cerco sem disfarces, a palha da cana balançando no quintal de algumas casas, querendo ocupá-las. A cidade não cresce para os lados, não há espaço. A monocultura da cana é tão excludente quanto nossa memória. Há que fatiar o massapê que lhe dá sustentação, fatiá-los em lotes. Feijão, arroz, frutos muitos. Haverá festa entre posseiros. O comércio não sofrerá oscilações. No perímetro urbano, uma escola para a formação de técnicos agrícolas. No Baldo do Rio uma creche para os filhos de operários, de diaristas. Com o sítio histórico restaurado, haverá turismo; dinheiro para aplicar em saneamento básico.

São 18 horas. Faço algumas fotos para que nossa memória não se perca. Peço carona a Beto Gadelha. Vou para Goiana com ele. Na rua da Conceição, há a festa, antiga quermesse na frente da Igreja da Conceição. As casas, todas construídas pela fábrica de tecidos. A memória busca a alvenaria da Vila Operária, imitando o barroco da igreja. São casas juntas, geminadas há setenta anos. Todas, hoje, com a frente tomada por cerâmicas luzidias, usadas em cozinhas, banheiros. Uma classe média emergente, de gosto discutível, seguiu, segue os passos da pequena-burguesia. Destruíram 438 anos de memória.

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Um comentario para "Marco Albertim: Reencontro de goianenses"

  1. Ivanise disse:

    Grande amigo e admirável escritor. Atento as possibilidades que o cotidiano oferece à literatura, sua obra é brilhante, afiada e extremamente viva.

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