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José Varella: Chanel nº 5

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Querida Madeleine,


 



O perfume que você usa tem charme de burguesia e fragrância de mistério da floresta amazônica. Sabia? Esta magia sintetizada pela química moderna vem das abas das serras das Guianas, pátria mítica de Macunaíma e do monstro Oman devorador de índios ianomamis. Fica em partes remotas da Guiana brasileira onde viçam as derradeiras árvores, outroras abundantes, de “pau rosa” do Brasil ou “bois de rose” na Guiana francesa. A história cosmética universal tem leve toque amazônico, se você quiser. Ou ar de devastação da floresta e trabalho escravo visto pelo outro lado da história.


 


 


Coco Chanel, ela mesma uma lenda, teria dito que uma mulher se desejar ser beijada deveria usar o feitiço número um dito “Chanel nº 5”. Mito feminino, dentre outros para seduzir astutos varões afortunados e que virou “merchandise”. Podendo hoje acender vendas da boa idéia do comércio justo a partir da Cidade Luz se todo mundo souber a fórmula secreta de mutação da feiúra em beleza, da miséria em riqueza consoladora e do fedor em perfume.


Deu-me de te escrever estas coisas aloucadas assim, Madeleine; depois de escutar a propaganda do ano da França no Brasil. O mexicano Octavio Paz, por exemplo, descobriu a América Latina através do desvio de Paris e aí também o apóstolo brasileiro da comunhão antropofágica, Oswald de Andrade resgatou para as letras latino-americanas o bon sauvage inventado pela filosofia revolucionária de Montaigne e Rousseau.


Quem sabe, Madelaine querida, a partir de vetustas metrópoles do velho continente viajantes do mundo futuro possam achar embaixadores voluntários das Amazônias dispostos a promover dentre outras coisas um turismo  histórico inteligente: a ver o peso das invenções que mudaram o mundo do século das Luzes ao presente, deixando sombras aqui e esclarecimento acolá. Como, por exemplo, a viagem de La Condamine à selva do Equador e Brasil dando ao velho mundo a magnífica descoberta da borracha e a era do automóvel a partir do novo continente, pelo ingênuo invento dos índios Omáguas ou Campebas, do rio Solimões, até hoje sem nenhum royalty por isto. Enquanto fábricas e montadoras de carros falidas pela especulação e má gestão dos negócios recebam rios de dinheiro público para engarrafar o trânsito nas ruas e autoestradas.


 


 


Em mim essas estórias inocentes ou indecentes conforme a diversidade de juízos e interesses particulares em jogo, provocam bárbaras recordações de inferno verde e paraíso perdido: mescla complexa de ira carbonária e desejos civilizatórios do quinto império do mundo… Revivem a lenda do El-Dorado e suas consequências fatais na sangria desatada das veias abertas da América Latina.


 


 


Como as grandes paixões e romances tem sua parte obscura nos piores sentimentos da humanidade. Apesar de meu sagrado ressentimento camponês e proletário, eu não quero, Madelaine querida, arruinar os negócios internacionais nem tampouco demolir o reino das perfumarias. Que dádiva maravilhosa é o aroma de insenso aceso na catedral de Santiago de Campostela plena de suor dos penitentes do caminho depois de um ou dois meses sem tomar banho direito nas estalagens de passagem!…


 


 


Todavia, gostaria de despertar a consciência amazônica do parto de um outro mundo possível, no qual cada mulher e cada homem tenha lá seu momento de fantasia e extravagância, sem contudo isto representar o preço da dor e da miséria de ninguém em nenhuma outra parte da Terra.


 


 


Madeleine, se você visse o que eu vi sobre a extração de pau rosa nos cafundós das Guianas (última escala da escravidão consentida do homem enganado pela sedução do consumo) até elaboração final dos melhores perfumes e produtos de tocador; eu acredito que não quereria mais o feitiço do Chanel nº 5 a troco de um beijo efêmero.


 


 


Se é verdade que a loucura da alquimia levou Filipe, o Belo; a cometer tortura e assassinato do grão-mestre dos Templários para extrair dele o segredo mortal da transmutação dos metais vis em ouro puro; a química moderna não foi menos insana do que sua arcaica antecessora; quando não viu o peso da civilização sobre a maldição de povos e populações tradicionais sacrificadas no altar da Modernidade.


 


 


Convenhamos que podemos compartilhar a mesma utopia de consertar o mundo com perfumes, música, prosa e poesia ou coquetel Molotov se preciso for, sem medo de ser feliz. Mas, você me tira do coração da selva para habitar o centro histórico de Paris quando pergunta se do Brasil, ou melhor; da Amazônia profunda poderá sair um dia uma nova civilização capaz de empolgar o mundo. Em princípio, eu te respondo que sim sem pestanejar. Todavia, demoradamente, era preciso explicar com Lévy-Strauss, Métraux, Curt Nimuendaju e outros sábios europeus que viram de perto a grandeza e decadência humana dos tristes trópicos, quais são os reais motivos pelos quais o velho mundo sufocou no longo passado colonial, durante 500 anos; e impede ainda no século XXI o parto do novo no planeta inteiro.


 


 


Eu devia te dizer alguma coisa neste sentido no passado ano do Brasil na França. Desculpa a demora, nós os brasileiros temos o defeito do jeitinho e da falta de pontualidade apenas compensado pela virtude do Carnaval e do fubebol.


 


 


Acreditamos, apesar de tudo, que o mundo acabará um dia por nos imitar e a grande bagunça do momento, vulgo a Crise financeira, nos faz pensar que esse dia já chegou. Agora no ano da França no Brasil chegou a hora de ensaiar o diálogo que ainda falta para os dois continentes  conhecerem-se melhor. Desde quando embaixadores tupinambás foram levar à corte de Ruen notícia da Revolução, acontecida, enfim, na Europa de 1789 e até hoje em curso na América do Sul.


 


 


Como diria Voltaire, o Mal existe. Ou seja, a globalização da pirataria a mais sutil… É preciso cultivar nosso jardim, Madeleine. Despertar o dr. Pangloss da perigosa ilusão de que vivemos no melhor dos mundos (olha aí, como a gripe suína, produz pânico comparável à peste bubônica!). Fazer um outro mundo possível. Uma Terra sem mal para todos. Como transformar o discurso do novo mundo em realidade palpável ou omeletes sem quebrar os ovos? Rogo que me perdoes se vou, por acaso, arruinar o sonho de turistas apressados nas próximas férias em qualquer cidade da América Latina feita à imagem e semelhança de Londres, Paris, Lisboa ou Madrí.


 


 


Pois tenho que te dizer o porquê da civilização do país do Futuro, Brasil, prometida e não cumprida pela morte no paraíso, onde a vida deve imperar com todo vigor. Sei da impossibilidade de meus rudes argumentos te convencerem, querida Madeleine. Ainda que, com toda serenidade do mundo como fez o psiquiatra e militante negro Frantz Fanom, eu te dissesse – como um inesperado soco no estômago –, que dentre os que governam a Terra há mais imbecis do que seria razoável…


 


 


Por esta razão incontornável eu apelo, em última instância, a uma explicação final a respeito da atração fatal da burguesia sobre as massas proletárias. Cujo emblema pode ser o perfume denominado “Chanel nº 5” (ainda que falsificado no Paraguai), ou uma joia de requinte trabalhada em ouro de garimpo e diamante extraído da violenta miséria de um país qualquer como Serra Leoa para se exibir em vitrines de griffe tais como H. Stern (falso ou verdadeiro). Claro, trata-se de uma metáfora de camelô (qualquer semelhança com as famosas marcas é mera coincidência…)


 


 


Você sabe, querida Madeleine, que Brasil e Serra Leoa são, respectivamente, o segundo e primeiro lugares da lista mundial de concentração de renda? Nem tudo estará perdido, entretanto, se a nova ordem mundial acelerar o crescimento da distruibuição de renda e da inclusão social. Sob alto patrocínio de grandes marcas multinacionais de charme. Justo quando “Chanel nº 5”, que nem  bela balzaqueana, completa 38 anos de idade. Pourquoi pas? Abraço saudoso.