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José Varella: Amazônia cabocla de Dalcídio Jurandir

A criaturada grande do índio sutil afrobrasileiro Dalcídio Jurandir – por outras palavras, as populações tradicionais amazônicas –, ensina a gente a reconhecer outra maneira de estar no mundo sem deixar de ser de parte inteira, sem fronteiras, como nômade

O jogo maneiro do menino Alfredo (alter ego de Dalcídio) com o caroço mágico de tucumã na mão, à guisa de búzio a brincar com o mito da Primeira Noite do Mundo, como todas crianças do mundo brincam na ingênua arte de transformar a realidade opressora em fina liberdade. Este impulso vital do homem, herdado do indomável progenitor animal.



Desafio à literatura panamazônica comparada, no magno espaço cultural circum-caribe que os criadores taurepãs de Makunayma manifestaram ao mundo primevo. Para júbilo do alemão Koch-Grünberg e glória do brasileiro Mário de Andrade: oportunidade para criar um novo Novo Mundo liberto de importados fantasmas da escolástica e da palmatória das Luzes; tarefa urgente que acadêmicos festejados adiam para as calendas gregas enquanto bebem em fontes estranhas aos tristes trópicos, premidos por complexos sentimentos compensatórios que, inconscientemente, a colonização mental predispõe ainda.



Todavia, na criativa literatura dalcidiana, a universal mestiçagem de corpos e almas longe de ser demérito barroco de mazombos colonizados é espírito da mais valia surdida dos macondos da profusa invenção cafusa das Américas Latinas: casa natureza e cultura sem dissolver o tecido da diversidade e a complexidade das relações socioambientais. Aí, o critério de raça se evapora no mormaço equatorial e vai na maré baixa dos acontecimentos sem mascarar a cruel verdade do apartheid social de fundo racista e escravista.



A fim de testemunhar o fim do mundo, o escritor se esvazia de si mesmo para ser vários, numa operação ''mediúnica'' à exemplo dos pajés intermediários entre o perturbado mundo dos homens e o imaginário onde reinam seres encantados ofendidos pelo destempero humano. Fronteira invisível como a física quântica, onde, não raro, bichos e plantas comandam a vida com prodigioso poder do mito e encanto antropoético da lenda. Oh! De que me serve a Ciência à meia noite rio acima quando estou sozinho debaixo de chuva numa canoa furada, ou  me encontro no mato sem cachorro?



Neste peculiar modo de existência neotropical, que o virtual universo marajoara representa na literatura universal, pode-se domar o quotidiano para fugir de sua sanha devoradora da consciência; porém o atalho inventivo não deixa jamais de ser sensível à leveza da vida passageira das periferias da grande periferia industrial sob o império da acumulação e do lucro. O romance dalcidiano se converte, então, no exercício arqueológico das ruinas da Belle Époque e escarmento de todos ''planos de desenvolvimento'' à revelia das populações tradicionais, desde o Diretório dos Índios até à globalização.



O romancista Dalcídio Jurandir nasceu Darcidio José Ramos em casa pobre de seu tio materno Manoel Eustáquio Ramos, na rua Samuel Mac Dowell, bairro do Campinho, vila de Ponta de Pedras, ilha do Marajó, no dia 10 de janeiro de 1909; conforme declaração desse tio responsável pela irmã Margarida Ramos, moça negra, solteira, mãe do primogênito Flaviano Ramos Pereira e do recém nascido Darcidio (sic) como se depreende do registro civil do Cartório Malato na dita comarca.



O pai destes dois meninos mulatos (um viria ser jornalista e o outro escritor,  ainda iriam nascer o médico Ritacínio, a professora Alfredina, e aquela menina que morreu afogada e aparece no romanceiro como Mariinha) era o branco Alfredo Nascimento Pereira, homem de origem portuguesa, provavelmente descendente de cristão novo, rábula da vila, capitão da Guarda Nacional, devoto de Santa Rita de Cássia; iria ele ser retratado pelo filho como major Alberto, viúvo do casamento com a índia catecúmena Antônia Silva que fora sua aluna na escola pública e com quem teve sete filhos.



Esta mulher indígena morreu durante parto de gêmeos, um natimorto e um sobrevivente que veio a ser pai deste um que vos fala (dos sete filhos da índia Antônia, o de nome Octaviano Celso Pereira, poeta acanhado; serviu de paradigma ao personagem Eutanazio no romance seminal ''Chove nos campos de Cachoeira''). Margarida Ramos seria dona Amélia, uma valente mulher negra que luta contra o alcoolismo e o conformismo do marido, e levou os filhos a buscar melhor lugar na escala social ao contrário das outras duas mulheres do capitão. Na vida real este ficaria viúvo uma segunda vez e voltaria a casar com outra mulher negra, dona Isabel Trindade; com quem ele teve mais cinco filhos do total de dezoito, todos assinando nome de família Pereira. Detalhe, somente os filhos de Margarida Ramos assinaram nome materno.



No ano seguinte ao do nascimento do futuro escritor, o capitão Alfredo Pereira, sua mulher Margarida Ramos e os filhos desta foram morar na vizinha vila da Cachoeira, onde casaram-se os pais e os filhos adotaram nome da família paterna retificando-se o registro do Cartório Malato para o nome civil de ''Dalcídio José Ramos Pereira''. Daquela despossuída família Ramos, afrodescente em terra de latifúndio branco; o escritor falará miudamente e de modo transfigurado no romance ''Passagem dos Inocentes'', compondo metáfora socioambiental na qual o avô negro Bibiano funde-se com a floresta donde extrai seu sustento. E a parenta Celeste inventa fuga para suposta ''Passagem Mac Dowell'' elegante na cidade grande, e termina na feia e enlameada passagem dos Inocentes, bairro do Umarizal. Onde Alfredo depois da desgraça dos Alcântaras (em ''Belém do Grão Pará'') se hospeda e passa maus bocados para estudar na capital até que perde suas ilusões e retorna a Cachoeira, já com ar adolescente deixando na boca do rio, na ilha de Santana, sua derradeira inocência.



Como informa Gunter Karl Pressler, o maior problema do romance de Dalcídio Jurandir talvez nem seja tanto a falta de livros que não se encontram nas livrarias; mas a precariedade da recepção em altos círculos críticos fora da esfera regional, onde amigos fiéis pelejam como podem. Infelizmente, sem mais assistência da política nacional de cultura: não mais ''difícil'' de que Guimarães Rosa o texto de Dalcídio Jurandir se complica no ilhamento da literatura do Norte brasileiro, que em geral ainda não conquistou lugar ao sol   no mercado nacional e, muito menos, no exterior. Além de armadilhas da linguagem que exigem verdadeira iniciação aos ''mistérios'' da paisagem da Amazônia. Sendo assim, é mais fácil classificar Dalcídio como escritor ''regional'' do que desbastar a ignorância amazônica do país do pau brasil.



Desta forma, a guarda do acervo do escritor paraense na Fundação Casa de Rui Barbosa, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, em conjunto com outros vultos da literatura nacional, é uma vantagem que precisa ser consolidada com mais recursos tecnológicos de compartilhamento com instiuições do norte do País para democratizar estudos da vida e da obra do romanciasta da Amazônia.



Até agora, com as exceções supracitadas, continuamos a remar contra a maré das dificuldades em que toda a obra de Dalcídio é testemunha. Na suposta Muaná (tirada de Ponta de Pedras no romance) o preto velho Bibiano conta a seu neto sobre a vida que levou com a família e suas poucas viagens até a feira no Ver o Peso, na cidade grande. O avô descalço dentro da mata fundia-se com troncos escuros de palmeira de miriti, das quais extraía a matéria prima para tirar o sustento naquela terra ilhada. O neto mulato calçado de botas fazia o velho vaticinar que Alfredo iria ganhar o mundo, lá fora…



Dalcídio faleceu aos sessenta e nove anos de vida, na cidade do Rio de Janeiro em 16 de julho de 1979. Embora esse cidadão do mundo tenha se tornado, como muitos outros migrantes brasileiros, um carioca de coração; lá ele viveu exílio voluntário e escreveu a maior parte da sua obra vivendo, dia a dia, o Marajó na diáspora. Por tal fidelidade recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio ''Machado de Assis'' de 1972, saudado por seu amigo e camarada Jorge Amado como ''índio sutil'' companheiro de luta. Depois do eclipse forçado pela ditadura e a paranoia anticomunista, Dalcídio ressuscita graças à releitura contemporânea de sua obra nestes 100 de idade que se comemora, a bem dizer, em família a cargo da Comissão do Centenário em parceria com a Secretária da Cultura do Estado do Pará (SECULT), Universidade Estadual do Pará (UEPA), Curso de Letras da UNAMA e no Fórum Social Mundial a participação especial da Fundação Maurício Grabois (FMG). O centésimo aniversário está sendo comemorado com uma excursão a Ponta de Pedras e Cachoeira onde diversas atividades marcam a data de 10 de janeiro.



Para um caboco avesso a cerimonias, como Dalcídio José Ramos Pereira foi em vida; é muita coisa. Mas para escritor do porte de Dalcídio Jurandir tudo isto pode ser uma pálida lembrança apenas para livrar a cara da intelligentsia nacional. O autor destas linhas tem admiração ao músico e compositor Gilberto Gil, sabe inclusive que ele como Ministro da Cultura junto com Jack Lang e outros líderes europeus teve importante papel na mobilização para a convenção da Unesco sobre diversidade cultural (aprovada, por sinal, contra os votos dos Estados Unidos e Israel).



Apesar disto, o ex-Ministro Gil ficou a dever sobre o Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir na coincidência do Ano da França no Brasil. E não foi por falta de empenho pessoal do antigo ministro da cultura de François Mitterrand, que durante visita à ilha do Marajó, no natal de 2005, lhe telefonou da fazenda Carmo-Camará para dizer da alegria de estar na Amazônia a caminho de Cachoeira do Arari onde iria ver a casa onde viveu o escritor marajoara e o Museu do Marajó. Pena que o amigo francês perdeu seu latim naquele telefonema a Gil em favor da tradução da obra do escritor amazônico que a estas horas faria farol no Fórum Social Mundial como nada mais. Mas, infelizmente, o grande músico partiu do Ministério da Cultura sem mandar aquele abraço à gente do Marajó.