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Elder Vieira: A cultura nas cidades 

Dois mil e vinte é ano de eleições municipais. Nelas, joga-se não somente o futuro das cidades: o pleito que se aproxima é uma espécie de esquenta para 2022, ano pleno de incógnitas, em que, mantido o calendário, forças titânicas se enfrentarão.

Por Elder Vieira*

Cultura nas cidades

Seja 2020, seja 2022, mais uma vez, dois projetos hão de trocar tapas e petardos: de um lado, o bloco antinacional, entreguista, antipopular e reacionário, capitaneado pelo Imperialismo e coadjuvado por latifundiários e banqueiros tupiniquins; no outro canto do ringue, as forças que pugnam por um Brasil soberano, democrático e socialmente justo, cujos maiores interessados são os trabalhadores e amplos contingentes do povo.

Ocorre que os embates nas cidades têm uma cor própria: trata-se de saber o que fazer com a concretude dos problemas municipais. E 2020 encerra um drama crucial: como governar uma cidade, ainda mais se for uma metrópole, com a arrecadação em queda livre por conta da enorme e prolongada crise econômica mundial e nacional? E como governar de forma democrática, com o ambiente político regressivo que impera?

Quem quer que resolva concorrer terá que apresentar um programa, e este programa terá de encarar essas duas questões. E se o candidato ou candidata for um democrata, um progressista ou de esquerda, aí é que a coisa complica. Como realizar uma gestão democrática, desenvolvimentista e inclusiva em meio a esta corrente econômica, social e politicamente regressiva?

A cultura, como tópico programático e dimensão essencial de uma cidade, é parte do dilema e, no mesmo passo, integra as soluções.

Historicamente, a cultura não é entendida como parte integrante do projeto de cidade, embora a cidade sem ela não tenha sentido; tampouco é vista como um móvel de seu desenvolvimento. A cultura, estando curiosamente em tudo, é no entanto tratada como assunto lateral, um apêndice; por vezes, um luxo que uma urbe se permite; uma despesa que, reduzida ao mínimo, ainda assim ressuma a desperdício.

É que a vida é curiosa. Cada um de seus objetos, seres e fenômenos existe à revelia de crenças e do que pensam as pessoas, mas só ganha estatuto de existente e sua verdadeira dimensão se percebido, e, uma vez detectado pela percepção, ocupa consciências e convicções.

A cultura é nitidamente percebida pelos que a praticam consciente e, em muitos casos, profissionalmente. É fruída e tem sua importância intuída pelo grande público. Mas nada disso é suficiente para que a maioria das lideranças políticas e sociais, em especial governantes, percebam-na como uma das mais importantes vigas do desenvolvimento econômico, social e urbano de uma cidade.

Cada real investido em cultura tende a economizar o triplo em segurança pública e outro tanto em saúde. “Empregos culturais” são mais qualificados e a média salarial dos trabalhadores do setor é maior que a média nacional. Cultura é o lugar da inovação e da invenção. Um cluster de animação instalado num bairro é fator de desenvolvimento local e nacional. Na escola, cultura é fator de melhor desempenho pedagógico de alunos, de mobilização da comunidade escolar e de democratização de acesso ao conhecimento. Um equipamento cultural instalado num bairro reorganiza, requalifica e ressignifica o ambiente urbano, humaniza relações, forma laços de solidariedade, desperta consciências e talentos. Dos projetos sociais financiados pelo poder público, os de cultura são os mais perenes e que melhores resultados apresentam.

Em todas as dimensões de uma cidade, a cultura impacta positivamente: na economia, seja de forma direta, como geradora de valor e inovação, seja indireta, mobilizando e incentivando outros ramos produtivos e de serviços; na cidadania, melhorando indicadores sociais e colaborando com a consolidação de valores democráticos, dentre eles, a participação e a convivência política e a pluralidade de ideias; na urbanidade, pautando relações interpessoais e o espaço citadino na perspectiva da liberdade e da civilidade; na própria cultura como território simbólico, espaço de disputa e de encontro de tendências estéticas, éticas e políticas, gerador de diferenças, identidades, contradições e sínteses, caldo de transformações, invenções e do devir.

Por certo, algum leitor, dos mais atentos, dirá:

– Mas, senhor articulista, não disse vossa senhoria que cultura é parte do dilema e da solução? Até agora, só apareceu a face resplandecente da moça. Cadê a megera?

Cultura é palco de luta. Ao mesmo tempo, é terreno em que distintos atores se movimentam e se relacionam e é instrumento que, a depender da mão que maneja ou segmento que domina, pode ser mais problema do que solução.

Nas mãos das elites, nacionais ou municipais, a cultura tende a ser mera mercadoria e cárcere. Por outras palavras, as classes dominantes tendem a resumir a cultura a mais uma fonte de lucro e a usá-la como instrumento de seu domínio sobre aqueles de quem extrai seus ganhos. É assim que, pervertida, a cultura assume sua face perversa, intolerante, excludente, ignorante, clichê, conservadora, alienada e alienante, orçamentariamente indigente e politicamente irrelevante.

Incorporar a cultura como solução dos graves problemas que atribulam a cidade pressupõe, da parte de um futuro prefeito e de sua base de apoio, um posicionamento inconfundível no campo da democracia e dos interesses nacionais. Uma política cultural adequada para uma cidade do século 21 é, antes, uma questão política, e não técnica, ou de gestão. Da posição política é que emanam as decisões técnicas e administrativas sobre cultura ou qualquer outra pasta de governo.

Se o lugar da cultura é no centro das deliberações sobre os rumos da cidade, ela deve estar presente, numa perspectiva democrática e progressista, no Plano Diretor do município, no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual apreciadas e aprovadas pela Câmara de Vereadores. Deve também estar presente como uma das dimensões de cada política ou programa de outras pastas da prefeitura, além de ter uma pasta e um plano municipal próprio, o Plano Municipal de Cultura, pactuado numa Conferência de Cultura da cidade, ratificado num Conselho de Cultura, aprovado na Câmara e financiado por um fundo também próprio, o Fundo Municipal de Cultura.

Por certo que uma política cultural assim esboçada nasce de uma concepção de cultura. Mas isto é assunto pr’uma outra conversa.

* Elder Vieira é escritor e servidor público. No extinto Ministério da Cultura, foi chefe de Gabinete das Secretarias de Programas e Projetos, de Políticas Culturais e de Articulação Institucional; assessor da Diretoria da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e coordenador-executivo do Plano Nacional de Cultura. Foi também vice-presidente da Funcaju (Fundação de Cultura, Turismo e Esporte de Aracaju), assessor Especial da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e subprefeito do Jabaquara, em São Paulo. Atualmente, é secretário de Formação e Propaganda do PCdoB-SP.