Do Dia da Marmota ao Feitiço do Tempo: a mística de 2 de fevereiro

É mais fácil uma marmota prever a duração do inverno do que os adultos vislumbrarem o desfecho de um dia

[Observação: contém spoilers]

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Se meus filhos e eu vivêssemos em Punxsutawney, no interior da Pensilvânia, provavelmente estaríamos hoje (2/2) nas ruas, sob a neve, celebrando o “Groundhog Day” – o Dia da Marmota. Há datas comemorativas e feriados sem graça – e talvez o pior de todos seja o Dia das Bruxas. Deus favoreceu os Estados Unidos com muitos privilégios, mas também debochou deles com essa celebração tão cafona. Em compensação, premiou uma cidadezinha norte-americana de menos de 6 mil habitantes com a simpática celebração à marmota e ao inverno.

Foi num Dia da Marmota, há exatamente dois anos, que mostrei o filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993) para o Pedro, meu filho mais velho, à época com 9 anos. A pandemia estava prestes a chegar. Não ficamos presos no tempo, mas seríamos condenados, por causa da Covid-19, a um confinamento mais perturbador que o de Phil Connors, o personagem de Bill Murray.

É em torno dele que gira Feitiço do Tempo, a melhor comédia hollywoodiana dos últimos 30 anos, escrita e dirigida por Harold Ramis. Phil é um meteorologista de Pittsburgh que apresenta a previsão do tempo na TV. Ao lado da produtora e de um cinegrafista da emissora, esse egocêntrico “homem do tempo” vai até Punxsutawney para cobrir o Dia da Marmota – uma tradição local comemorada justamente em 2 de fevereiro.

Longe das câmeras, Phil ridiculariza toda a programação da pequena cidade em torno de sua mascote oficial – uma simpática roedora. E avisa aos companheiros de viagem que, por ter recebido uma proposta de outra emissora, está prestes a mudar de emprego. Após transmitir ao vivo as festividades, a equipe se prepara para voltar a Pittsburgh, mas é surpreendida por uma nevasca, que os obriga a pernoitar na cidade.

É aí que começa a maldição de Phil. Como se estivesse fadado a um eterno déjà vu, Phil não consegue se livrar do Dia da Marmota. Após uma noite de sono, ele acorda com o despertador e, aos poucos, percebe que os acontecimentos do dia anterior se repetem. Da música que toca na rádio às conversas com qualquer pessoa que encontra, tudo é igual. A nevasca também reaparece e impede o regresso da equipe. E no dia seguinte… bem, não há dia seguinte, não há amanhã! O emburrado meteorologista desperta sempre no mesmo momento – às 6 horas daquele 2 de fevereiro.

Num dos episódios mais conhecidos da mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses e, como punição, é acorrentado no alto do monte Cáucaso. A cada dia, um corvo lhe devora o fígado – que, no entanto, é regenerado logo depois, para voltar a ser comido no dia seguinte. Vernant ou Naquet (não lembro qual deles) escreveu que, entre os mitos gregos, essa “dor constante, mas sempre renovada” imposta a Prometeu é uma das penas mais singulares. Seu castigo duraria 30 mil anos, mas Prometeu foi salvo por Hércules e substituído no Cáucaso pelo centauro Quíron.

Phil Connors, ao contrário de Prometeu, não sabia o porquê de sua sina – da “dor constante, mas sempre renovada” à qual estava submetido. Passado o espanto inicial, ele desfruta do prazer de curtir a vida sem precisar pensar nas consequências. Logo, porém, a euforia se desfaz. Phil se apaixona pela produtora e parceira de viagem, Rita (Andie MacDowell, mais linda aqui do que nunca). Mas como conquistar uma mulher que, até a véspera daquele 2 de fevereiro, só via nele prepotência, mau humor e machismo? Como se aproximar dela em um único dia – antes que aquele 2 de fevereiro acabe e recomece do zero?

A estratégia de Phil é aproveitar cada Dia da Marmota para conhecer os gostos e as predileções de Rita, como poesia francesa do século 19 e vermute doce com gelo e limão. Ele usa essas informações privilegiadas, noite após noite, para planejar o dia mais impecável possível, na tentativa de surpreender a produtora, se aproximar dela e levá-la para a cama. “Foi perfeito. Não poderia planejar um dia assim”, chega a dizer Rita, numa dessas noites. “Claro que pode”, responde Phil. “Mas dá muito trabalho.”

Mas não existem dias perfeitos e, na “hora H”, Rita sempre dá o fora em Phil. Desencantado, o “homem do tempo” vai ao extremo e, para se livrar da prisão do Dia da Marmota, recorre ao suicídio. Ele se mata uma, duas, várias vezes – numa delas, Phil sequestra a marmota de Punxsutawney, foge com ela numa caminhonete e se joga num penhasco. Nada funciona! Quando são 6 horas da manhã, o meteorologista estará na cama do hotel da cidade e acordará com o despertador, ao som de I Got You Babe na voz de Sonny e Cher.

Não consegui descobrir por que 2 de fevereiro foi a data escolhida, lá no século 19, para o ritual da marmota. No Brasil e na África, é Dia de Iemanjá, a rainha do mar – “O vento que rola nas palmas / Arrasta o veleiro / E leva pro meio das águas de Iemanjá”. Em países como a Escócia e a Irlanda, é feriado de Imbolc, em reverência a Brigit (Brígida), a “deusa da tríplice chama”, associada ao fogo, à poesia e à medicina. A santa Brígida nos ensina que sem sua luz, sem sua inspiração sobre nós, a vida não tem sentido.

Ainda para os irlandeses, nenhum 2 de fevereiro foi tão marcante quanto o de 1922, há um século. No dia em que completava 40 anos, o escritor James Joyce recebeu o maior presente de sua vida: a editora Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare and Company, lançou em Paris a primeira edição de Ulisses. É a mística do dia 2 de fevereiro. Dublin, hoje, há de estar mais em festa do que Punxsutawney, a comemorar os cem anos do maior romance moderno e os 140 de seu revolucionário autor.

Voltemos ao filme. Comédias têm, necessariamente, final feliz. Uma pista para descobrir o desenlace de Feitiço do Tempo está na cena em que Phil, ainda crente na possibilidade de seduzir Rita, recita para ela versos em francês: “La fille qui jaimerais / sera comme un bon vin / qui se bonifiera un peu / chaque matin” (“A garota que amarei / será como um bom vinho / que se aperfeiçoará um pouco / a cada manhã”).

Melhorar um pouco, todas as manhãs, é o desafio de Phil Connors, que só alcança o novo dia – o 3 de fevereiro, o amanhã – quando aprende a lidar com seu destino e para de tentar sabotá-lo. Não é precisamente um filme infantil, mas o pequeno Pedro adorou. Um menino de 9 anos, às vésperas de uma pandemia, já podia desconfiar que é mais fácil uma marmota prever a duração do inverno do que os adultos vislumbrarem o desfecho de um dia.

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