Sem categoria

Com “2001- Uma Odisseia no Espaço”, Kubrick saiu à procura do humano

Lançado em 1968, épico espacial “2001 – uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick, fez das grandes questões da humanidade um espetáculo à altura de suas ambições.

Por Pedro Strazza*

Kubrick - Ronaldo Barata - Ronaldo Barata

Na carreira de Stanley Kubrick, “2001: Uma Odisseia no Espaço” surge entre os lançamentos de “Dr. Fantástico” e “Laranja Mecânica”, dois filmes que – cada um ao seu modo – ficaram famosos por expressar na tela o viés mais ácido do pessimismo com o qual o diretor geralmente usava de pincel para retratar a realidade de sua época. O primeiro, de 1964, se estabeleceu como uma grande sátira do cenário da Guerra Fria e seu clima de animosidades em proporções atômicas, jogando no escracho com toda a tensão subjacente do momento político de meados dos anos 60.

Já o segundo, lançado em 1971 e baseado no livro homônimo de Anthony Burgess, tinha na ultraviolência e no controle governamental os motores de sua distopia, cuja irreverência no humor mordaz refletiam um estado de espírito nada tranquilo carregado por aqueles tempos.

É curioso, então, que entre estas duas obras tão objetivas e incisivas – e ao mesmo tempo tão únicas e passíveis de expansão – em seus comentários político-sociais esteja aquele que é o trabalho mais ambicioso de Kubrick em termos estéticos e temáticos, que apesar da recepção dividida em seu ano de estreia, ajudou a moldar em torno do diretor norte-americano a imagem de grande cineasta, de referência máxima aos olhos do público quando o assunto é a sétima arte que vive após 50 anos. Expor esta colocação de “2001” dentro do encadeamento dos trabalhos de seu diretor soa de início como uma inadequação milagrosa, é claro, mas em um retrospecto mais aguçado ela não só se revela uma progressão lógica natural como também é decisiva para definir os caminhos que Kubrick tomaria nos anos seguintes, com sua gigantesca pretensão de abordagem sobre o gênero da ficção-científica, fundamentando assim em caráter definitivo a lógica tão transformativa e coerente de seu cinema.

Não que este encadeamento de trabalhos do diretor também ajude muito o espectador na hora de avaliar a continuidade e o desenvolvimento das temáticas abordadas por ele. Por mais que mantenha constante alguns temas, a filmografia de Kubrick teve do começo ao fim um ar de imprevisibilidade: se ele formou seu estilo de direção nos suspenses policiais (“O Grande Golpe”) e nas produções de guerra (“Glória Feita de Sangue”), em sua carreira ele atravessaria gêneros muito distintos, como o épico espada-e-sandália (“Spartacus”), o romance erótico (“Lolita”) e o horror (“O Iluminado”), chegando a jogar algumas vezes com esses contrastes seguidos de tipografia para fazer a ponte entre os filmes e continuar suas discussões sobre a sociedade e o ser humano enquanto indivíduo. Uma atitude um tanto drástica, por exemplo, que depois de ver o futuro em “Laranja Mecânica” ele tenha decidido voltar ao passado em “Barry Lyndon”. Tudo isso feito com o primor de suas narrativas hipersensoriais, que buscavam no transbordamento emocional (seja ele qual fosse) sua razão primordial de existência enquanto filme.

“2001” não escapa a esta lógica, na verdade a usa em toda a sua potência. O roteiro de Arthur C. Clarke é tratado por Kubrick como a ópera definitiva sobre a humanidade, tornando o filme um ensaio acerca do conceito por trás do ser humano que não considera nem por um instante fugir da pretensão que permeia todos os pontos de sua proposta. Do uso de sinfonias de Richard Strauss e György Ligeti ao uso dos planos milimetricamente calculados de seu cineasta para retratar as imagens mais grandiosas (é um filme que literalmente se inicia com o alinhamento de planetas), passando pelas famosas transições drásticas de cenário (a obra possui uma das maiores elipses da História do cinema no entreato do primeiro e segundo capítulos, é sempre bom lembrar), a produção tem nos grandes temas a sua concepção e abarca neles com o propósito claro de decodifica-los – e saber quais são estes temas constitui metade do maravilhamento engendrado pelo diretor aqui.


Ilustração: Olavo Costa 

Neste sentido, o que há de particular mesmo no filme é a forma como este desenvolve os “balés de amor e morte” do diretor, conceito que o crítico francês Michel Ciment definiu em seu livro “Conversas com Kubrick” (que recentemente voltou a ser republicado no Brasil). Se estas “danças” geralmente ilustram no cinema do diretor o jogo entre atração sexual e proximidade da morte aos quais seus personagens estão constantemente submetidos, em “2001” elas são transportadas (ou talvez metamorfoseadas) a relações de deslumbramento e frieza frente uma evolução em constante movimento. Apesar do diretor a todo instante entregar belíssimas imagens do futuro e suas tecnologias a fim de encher os olhos de seu espectador (a segunda parte da história, que mostra a descoberta do segundo monólito na Lua, se inicia com dez minutos feitos inteiros de “dança” realizadas pelas naves espaciais e seus astronautas), este espetáculo visual não é sentido em qualquer nível por seus personagens, que trafegam por espaços tão belos e inimagináveis com indiferença e se relacionam entre si de uma forma quase robótica – seja fisicamente, como a “confraternização” na estação espacial do segundo capítulo, ou nas duas teleconferências pessoais mostradas na trama.

Este retrato dos homens em sociedade, tão robotizado em seu funcionamento, está muito ligado no longa à noção geral de que os progressos físicos obtidos pela humanidade nem sempre são acompanhados por uma evolução espiritual de seus indivíduos, algo que Kubrick já chama a atenção de forma mais visceral nas transformações promovidas pelo monólito nos macacos do primeiro capítulo. Estes momentos iniciais inclusive retomam parte da configuração original do cinema kubrickiano no que diz respeito à relação com a violência: se antes os símios estão sujeitos a uma vulnerabilidade por conta de sua passividade, se alimentando de plantas e fugindo de onças e comunidades rivais, o contato com o paralelepípedo proporciona um conhecimento que logo é traduzido por eles em uma postura muito mais agressiva para o mundo, seja no aprendizado do uso do osso como arma ou na adesão a um regime alimentar carnívoro – uma prática que garante uma sobrevivência mais segura no meio selvagem, de acordo com o julgamento da produção.

A presença do monólito vem para acelerar o processo evolutivo do ser humano, mas por esse último não estar preparado para passar por estas metamorfoses, algo de substancial acaba se perdendo nestas transições. Não à toa, o progresso científico apresentado em “2001” é acompanhado por uma progressão de impessoalidade das relações do público com os personagens, conforme estes últimos vão se tornando cada vez menos individualizados em seus perfis ao ponto de passarem a servir como meros acessórios das discussões empreendidas pelo filme, com o protagonista final – o astronauta Dave Bowman (Keir Dullea) – não possuindo qualquer histórico ou característica pessoal discernível ao espectador. Além da amizade profissional com Frank Poole (Gary Lockwood), a única coisa que sabemos sobre o comandante da Discovery One é sua habilidade de desenho, de retratar da maneira mais fiel possível o (pequeno) mundo ao seu redor – e quando o monólito enfim o leva a adentrar pela nova jornada evolutiva, é claro que o protagonista não só verá tudo como uma grande abstração surrealista, como toda a experiência o sobrecarregará sensorialmente ao ponto do desespero e da loucura, como Kubrick bem atenta nos closes rápidos sobre o rosto de Bowman durante a viagem.


Ilustração: Olavo Costa


O único que parece escapar dessa condição despida de emoções é justamente HAL-9000, a inteligência artificial que serve para o filme como seu maior antagonista e ao mesmo tempo seu personagem mais humano. Se a produção encena sua história a todo momento sob o princípio da artificialidade de relações – especialmente nas relações entre pais e filhos, retratadas com todo o ar de banalidade –, a IA que enfim se revolta contra os tripulantes da Discovery One é trabalhada justamente na via contrária, sob o viés da máquina que desesperadamente tenta abandonar sua condição de impessoalidade e assumir uma condição de humanidade. É justo nos circuitos elétricos de HAL que Kubrick há de encontrar o contraponto ao deslumbre frio e maquinário, extrapolando sua ópera espacial ao conto de horror puro onde o monstro na verdade é a grande vítima. Nada é tão assustador em “2001” quanto a cena em que Bowman desliga HAL e a máquina se vê em uma morte lenta e agonizante rumo à demência final.

São destes choques de narrativa – entre humano e máquina, progresso e regresso, deslumbre e frieza – que Kubrick e Clarke rumam em direção ao apoteótico final, cujos mistérios de significado permanecem sem decodificação no mesmo nível que sua beleza paradoxalmente gélida e explosiva se mantém intacta pela ação do tempo. Nos passos finais dados por Bowman rumo à evolução máxima da humanidade, “2001” sacramenta a seu espectador não uma resposta a seus anseios de identidade perante os mistérios do universo, mas a complexidade emocional de toda esta procura por respostas que nunca aparecerão. E se esta ausência de certezas há de se manifestar com naturalidade, Kubrick as materializa sob a chave do mais potente espetáculo.