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Claudio Daniel: Recordação de Mário Quintana 

Mário Quintana faleceu há 25 anos, na cidade de Porto Alegre (RS), aos 87 anos de idade. Um dos poetas brasileiros mais lidos no país e no exterior, Quintana nasceu em Alegrette (RS), em 1906, foi poeta, tradutor e jornalista, colaborando em jornais e revistas como O Estado do Rio Grande, Província de São Pedro e Correio do Povo, onde foi colunista da página de cultura até 1977, quando saiu do jornal.

Por Claudio Daniel*

Mário Quintana

O trabalho na imprensa diária foi vital para o trabalho poético de Quintana, pelo contato mais próximo com os leitores e também pela incorporação de temas da vida cotidiana. Um dos resultados desse diálogo entre poesia e jornalismo é o livro Hora H, publicado em 1973, que reúne poemas e textos veiculados pelo autor em jornais e revistas. A popularidade de Mario Quintana deve muito a textos como esses, reproduzidos até em agendas escolares, mas também valeram a ele a acusação de facilidade.

Sua obra, porém, é multifacetada e nela encontramos desde textos de compreensão imediata e forte apelo emocional, que muito contribuíram para a sua estima pelo público, até peças mais elaboradas, de refinado acabamento artístico, que revelam o apurado artesão do verso, capaz de escrever, com originalidade, desde sonetos e haicai até poemas modernistas, em verso livre, e composições próximas à vanguarda

A rua dos cataventos (1940), livro de estreia de Mario Quintana, reúne sonetos escritos conforme as regras tradicionais de métrica e rima, inserindo-se numa estética neoclássica. Porém, já estão presentes aqui elementos da fase madura do poeta, como o uso de palavras simples, o humor, a coloquialidade e o retrato de cenas do cotidiano.

Encontramos neste volume referências urbanas, lembranças da infância, evocações religiosas e a nostalgia de um passado real ou imaginado, mas o tema-chave é o próprio poeta, que representa a si mesmo de forma irônica, usando por vezes o humor negro: “Sou o meu próprio Frankenstein — olhai! / O belo monstro ingênuo e sem memória”.

Já em Canções (1946), Quintana revela uma linguagem próxima da modernista, abandonando o soneto e usando formas mais livres. A mudança de estilo em seu segundo livro levou a crítica a apontar uma evolução do autor da lírica parnasiana para a modernista, hipótese contestada por Tânia Franco Carvalhal, que, no ensaio O poeta fiel a si mesmo, afirma: “Mario Quintana começou a publicar na imprensa desde os anos vinte e só iria reunir seus poemas em livros a partir de 1940. Ocorreu assim que os textos que integram cada obra foram elaborados simultaneamente, o que levou o poeta a afirmar: ‘o fato é que nunca evoluí. Sempre fui eu mesmo’. Esta afirmação quer contradizer a aparência de uma evolução que a disposição lógica dos poemas ocasionou. E não há como negar: organizados de acordo com características formais, os textos desenham um percurso que vai da forma fixa e da regularidade métrica a formas mais livres, em busca de um ritmo próprio. Deste modo, mesmo que tenham sido compostos quase ao mesmo tempo, os diversos poemas atestam a procura de diferentes maneiras de dizer e indicam como o poeta vai optando por uma expressão coloquial, próxima da prosa”.

Em Canções, Quintana mantém a sutileza, a musicalidade e o tom sentimental ou ingênuo de seu livro de estreia, mas encontramos peças de surpreendente inovação formal, como a Canção de nuvem e vento: “Medo da nuvem / Medo Medo / Medo da nuvem que vai crescendo / Que vai se abrindo / Que não se sabe / O que vai saindo / Medo da nuvem Nuvem Nuvem / Medo do vento / Medo Medo”, que permite uma aproximação com o poema O medo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado um ano antes, no livro A rosa do povo: “Em verdade temos medo. Nascemos escuro. (…) Cheiramos flores de medo. / Vestimos panos de medo”.

Os dois livros foram publicados pouco após o término da 2ª Guerra Mundial, período marcado pela violência, devastação, angústia e medo, mas, enquanto Drummond concilia reflexão, expressão emocional e referência direta aos fatos políticos da época, Quintana é mais sutil, paradoxal ou enigmático: “Medo do gesto / Mudo / Medo da fala / Surda / Que vai movendo / Que vai dizendo / Que não se sabe… / Que bem se sabe / Que tudo é nuvem que tudo é vento / Nuvem e vento Vento Vento!”.

Sapatos floridos, publicado em 1948, inaugura uma nova fase na obra poética de Mario Quintana, que passa a utilizar o poema em prosa, a epígrafe, o paradoxo, o epigrama, as definições absurdas, formas que ele voltaria a trabalhar em obras posteriores, como A vaca e o hipogrifo, de 1977. Alguns dos poemas breves mais conhecidos de Quintana pertencem a este volume, como Carreto: “Amar é mudar a alma de casa” ou Epígrafe: “As únicas coisas eternas são as nuvens”. O humor, neste livro, aproximava-se muitas vezes do non sense, o que levou alguns críticos a apontarem uma faceta surrealista do poeta. Se a aplicação do conceito é questionável, pois o surrealismo é um movimento de vanguarda da década de 1920, com manifestos, textos teóricos e procedimentos criativos específicos, como a escrita automática, é possível identificar em Quintana elementos similares aos da poesia surrealista, e em especial as imagens poéticas que alteram a natureza ou a função de seres e objetos, como no poema Calçada de verão: “Quando o tempo está seco, os sapatos ficam tão contentes que se põem a cantar”. Tânia Franco Carvalhal reconhece que na poesia de Quintana “realidade e fantasia se misturem”, porém, nunca há um divórcio com o mundo objetivo: “mesmo nos textos mais oníricos, onde a imaginação adentra para a instalação de um clima super-realista, sua poesia não perde o pé da realidade. Em seus poemas, a dimensão sobrenatural está intimamente articulada com o real”.

A obra de Quintana é enorme e seria impossível analisar todos os seus livros em um breve artigo, mas as três obras que comentamos rapidamente aqui dão uma ideia aproximada da diversidade e riqueza de sua poesia. Na opinião de José Paulo Paes, Quintana “sem dúvida, foi o maior poeta do Rio Grande do Sul deste século. Dentro da segunda geração modernista, ele seguiu um caminho próprio”.

O poeta tentou por três vezes obter uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas em nenhuma das ocasiões obteve os votos necessários para conquistar uma cadeira. Em 1980, no entanto, recebe o prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra, e no ano seguinte recebeu o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano. Em 2006, no centenário de seu nascimento, várias comemorações foram realizadas no estado do Rio Grande do Sul em sua homenagem.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte