Edir Pina de Barros, poeta e antropóloga nascida em Ponta Porã (MS), é uma estudiosa das comunidades indígenas brasileiras e tem desenvolvido um rico trabalho poético que registra práticas culturais, lendas e relatos mitológicos de diversas etnias, incorporando também palavras do tronco linguístico tupi-guarani, do macro-jê e do caribe (bakairi) em seus versos, que adquirem expressiva força sonora.
Por Claudio Daniel*
Publicado 21/09/2019 00:50 | Editado 13/12/2019 03:29
Em suas composições, a autora concilia a musicalidade, as imagens poéticas e a construção de pequenas narrativas com o enfoque crítico do processo de genocídio dos povos indígenas brasileiros, iniciado com a colonização portuguesa e que permanece até os dias de hoje.
O crescimento da intolerância e da violência contra as comunidades indígenas, quilombolas e os trabalhadores rurais sem terras desde o golpe de Estado de 2016 até o início do novo ciclo autoritário no País conferem extrema atualidade a essa poesia –uma voz necessária para a defesa da biosfera, do pluralismo cultural, étnico e religioso que define a cultura brasileira.
DA SÉRIE BARBÁRIE
Os Akroá-Gamella olhavam e não viam aldeias, pés de caju, juçara, bacurizeiro, guarimã, pacas, tatus, cotias: apenas búfalos e bois. Rompendo a invisibilidade dos renegados pelo Estado (que os declarou extintos) decidiram retomar, pouco a pouco, as terras de seus pais e avós. E foram cortando cercas, erguendo aldeias, demarcando espaços. Luta desumana, desigual. Duas centenas de homens com armas de fogo, facões, pedaços de pau, contra trinta homens, mulheres, crianças, correndo e caindo no pasto: vinte e dois feridos. Um foi baleado no tórax, na perna, golpeado na testa e viu serem decepadas as suas duas mãos. Outro, ferido à bala, depois de muitas pauladas teve sua mão direta arrancada por golpe certeiro de facão. Seus joelhos foram cortados nas articulações para que não pudessem correr, como se faz com búfalos e bois que invadem roça dos outros na baixada maranhense. O agressor relatou que precisou “pisar em suas pernas para retirar o facão que ficou cravado no osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore”. Ribamar não dança mais, a sua mão reimplantada não lhe pertence mais: não bate tambores rituais, não caça-pesca-planta, não tem forças para nada, nada suporta, apenas dói.
As “vítimas das invasões” nunca nem ouviram falar de índios por ali.
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II
Quantas balas
no tekoha sagrado
dos Guarani-Kaiowá?
Nem Ñanderu sabe.
Milícias encapuzadas
fecham o cerco,
ínvadem aldeias
e atiram sem trégua.
Espancam, sequestram,
afugentam, estupram,
atropelam, torturam
e matam impunemente
Pássaros de ferro
sobrevoam o tekoha
balas e mais balas
barbárie secular.
E agora? Quantas balas
no tekoha sagrado
dos Guarani-Kaiowá?
Nem Ñanderu sabe.
III
E os recentes genocídios
Tikuna e Yanomami?
Os isolados? Os acampados
entre cercas e estradas?
Neste tempo de barbáries,
abre-se oficialmente
nova temporada de caça
com carta branca para matar.
* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutorado em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.