Celso Marconi: A Mostra de Cinema de São Paulo e o futuro

Mostra deixou de ser local, apenas de uma cidade, para se tornar nacional, de todas as cidades do país

Já temos demonstração de que a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em sua 44ª edição, foi um grande sucesso, principalmente pelo público que atingiu. É uma diferença enorme entre os espectadores que participavam da Mostra quando ela atingia apenas os paulistanos e o que aconteceu com os filmes sendo exibidos numa plataforma online para todo o país.

Muitos podem alegar que levando os filmes para os espaços minúsculos das televisões e até dos celulares houve uma queda enorme do ponto de vista estético. É uma questão a ser debatida pelos teóricos do cinema. Eu, como comentarista do setor, penso que o cinema é a arte do movimento e da repetição, como disse Walter Benjamin, e assim um filme não pode fugir às mudanças de espaço, sejam elas quais forem.

A Mostra de São Paulo já era internacional pelo fato de apresentar filmes de muitos países do mundo, e agora me parece que conseguiu algo mais importante. A Mostra deixou de ser local, apenas de uma cidade, para se tornar nacional, de todas as cidades do país. E penso que isso é ótimo, tanto para aqueles que realizam a Mostra quanto para o público que se transformou potencialmente em multidões.

Espero que no próximo ano, 2021, a Mostra seja completa, isto é, paulistana e nacional. E que os organizadores se liguem sem provincianismo aos jornalistas que pretendam participar da necessária cobertura da Mostra.

(Olinda, 5. 11. 2020)

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VIAGEM AO FIM DO MUNDO

Muito bom rever esse filme de Fernando Cony Campos, “Viagem ao fim do mundo”, principalmente para relembrar a existência de um realizador de dimensão extraordinária. Nessa revisão, certamente gostei mais do filme. E o que me pareceu é que devemos compará-lo com o genial “Terra em Transe” de Glauber Rocha, que foi feito em 1965. E “Viagem ao fim do mundo” foi lançado em 1968. São ambos da mesma época e têm sem dúvida as mesmas intenções, que seriam em síntese mostrar para os espectadores em que mundo estávamos vivendo. O filme de Glauber fala mais diretamente no que acontece no mundo político, enquanto o de Cony se dedica ao mundo social. O filme de Cony parte de uma situação em que pessoas estão num aeroporto esperando viajar. Então os fatos vão acontecendo de forma realista, mas às vezes num tom quase surrealista. São alguns personagens, não muitos, mas é a partir deles, do comportamento dentro do avião, que o filme analisa o mundo social.

Enquanto Glauber tinha uma visão materialista, digamos, a visão de Cony é mais imaginária, e o que marca profundamente a obra é a ironia. Tudo é dito sempre como expressão irônica, quase que só existindo na imaginação de cada um. Cony deixa claro que não acredita nos sentimentos daquelas pessoas, mas que elas estão somente aparentando a realidade. Como Fernando Cony Campos era mais um intelectual do que cineasta, seu filme, apesar de excelente como obra artística, é menor enquanto dimensão cinematográfica e nesse ponto Glauber leva vantagem. Mas Fernando Cony se aprofunda em questões como a comunicação e mostra em várias ocasiões publicidades comerciais da época, sempre num tom de extrema ironia. Ele também sabe utilizar a música como complementação do que a imagem está mostrando e assim por exemplo temos a música de Caetano Veloso sobre a América Latina e esta cria uma sequência fundamental. Então, temos em “Viagem ao fim do mundo” um filme de um pensador, mas como ele tem um sentido de ironia extraordinário, o resultado das sequências se transforma. Para mim foi bom também rever atores como Jofre Soares e o nosso amigo pernambucano José Marinho, que também aparece em filmes de Glauber.

(Olinda, 30. 10. 2020)

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SILÊNCIO E PÔR DO SOL

Esse é um filme japonês que foi realizado por um cineasta que tem 24 anos de idade. Ele está concorrendo ao prêmio de Novo Diretor na 44ª Mostra SP. Não vi todos os filmes que estão concorrendo nessa categoria, no entanto penso que ele pode não ser o melhor, mas merece o prêmio, porque sua realização se revela de um autêntico diretor. Do cinema que eu conheço e me lembro, acho que ele deve ter visto a trilogia do tédio de Michelangelo Antonioni e se influenciou profundamente. Entretanto, Kazufumi Umemura conheceu a forma de fazer cinema de Antonioni, sugou dele essa estética e mesmo a ideologia cinematográfica, mas fez seu filme com uma densa linguagem, que me parece ter toda a estrutura da cultura japonesa. “Silêncio e Pôr do Sol” foi todo filmado numa região do Japão que tem uma arquitetura moderna e ocidental, inclusive uma enorme ponte por onde passa durante muitas vezes um trem. O filme não tem uma estória propriamente, pelo menos eu não consegui encontrar essa estória. Mas tem estranhamente a presença de uma comunidade, mesmo que a cidade esteja muito pouco habitada, pelo menos nunca aparece alguma multidão. É um filme de pessoas isoladas e que demonstram viver num clima de extremo tédio. E nisso é onde ele mais se aproxima dos filmes de Antonioni. Tem um velho que estranhamente vive num campo, mas onde ele está existe como se fosse uma sala com mesa, sofá, cadeiras e até uma estante. Isso dentro do mato. Essa figura faz parte fundamental no roteiro do filme. E toda a aura de poesia parte de um escrito que está num caderno que uma moça lhe entregou. É um velho doente e que termina morto. Outro personagem que transpassa todo o filme é uma moça que é garçonete num bar e vivia olhando, me parece que somente isso, olhando para a vida dos outros. Isso faz com que ela conseguisse viver e escapar do tédio. Tem vários outros pequenos personagens.

A grande diferença entre os filmes de Antonioni e de Kazufumi Umemura é que nos do italiano os personagens são um grupo de burgueses, e no do japonês temos somente pessoas populares da chamada classe média baixa. Kazufumi foge totalmente a uma gramática hollywoodiana e as cenas do seu filme quase sempre são autônomas. Isto é, cada uma tem autonomia em seu significado. Claro que todas se concatenam. Mas elas não dependem uma da outra. E os textos são ditos às vezes de uma forma inteiramente solta. Não há mesmo um diálogo, mas pequenas declarações. Embora tenha 2 horas e 16 minutos de duração e mostre o tédio da vida atual, “Silêncio e Pôr do Sol” não deixa o espectador entediado. Há uma beleza sutil na fotografia e no próprio clima da atmosfera. E há um grande silêncio durante o percurso de exibição. É um cinema onde a imagem predomina.

(Olinda, 1. 11. 2020)

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LIMIAR

Esse filme “Limiar” não deveria participar dessa Mostra de Cinema, mas de alguma outra mostra de artes visuais, pois o que ele pretende é uma interrelação com o espectador através do visual e não de um contexto estrutural. Cinema tem que ter outras formas de diálogo. Os realizadores Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson fazem fora do filme uma preleção de 10 minutos falando acerca do trabalho deles e realmente explicando que são artistas visuais. Esse filme se passa na Armênia, mas na ficha técnica não consta o país de produção. Certamente porque esses dois artistas abriram mão da nacionalidade e trabalham onde houver condições de produção. Dito isso, o mais importante é que o filme como obra plástica não me tocou. A região da Armênia em si mesma não é arte e eles filmam numa constante – mas a beleza da imagem não consegue emocionar. É uma coisa sem tempo. Não consegue criar uma dimensão poética. Fica uma espécie de continuidade pela mesma imagem. Embora presente sem a força que a arte exige.

(Olinda, 2. 11. 2020)

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TENTEHAR – ARQUITETURA DO SENSÍVEL

Pelo título, tive a impressão de que se tratava de um documentário sobre algum arquiteto ou então sobre algo da nossa arquitetura. Mas o filme de Paloma Rocha e Luis Abramo é uma pesquisa em torno do pensamento popular no Brasil. E assim, entrevista desde bolsonaristas em campanha em Brasília, índios em região do Amazonas, moradores de rua em São Paulo, manifestantes do MST, até um escritor paulista conhecido nosso, que faz uma análise da situação de perplexidade em que estávamos em setembro de 2018. É uma longa pesquisa do ponto de vista do cinema. Uma pesquisa que é comum feita pelos institutos de pesquisa. Mas a grande diferença é que enquanto filme o espectador tem a presença de quem fala e assim poderá analisar e sentir até que ponto o que está sendo dito é verdade ou mentira. Paloma Rocha é filha de Glauber e conseguiu assimilar dele a capacidade de criar um cinema em que o cineasta ouve mais do que se pronuncia e assim deixa a sua marca, mas indiretamente. O outro diretor do filme é Luis Abramo, que também é filho de um cineasta excelente que é o Fernando Cony Campos, com quem começou a trabalhar durante as filmagens de “O mágico e o delegado”. Então “Arquitetura do sensível” foi criado por dois cineastas com tradição na estrutura do cinema brasileiro. Penso que não terá um sucesso de exibição, mas deverá servir para alguns como estímulo para reflexão sobre esse país desguarnecido, e que por isso mesmo está tão perdido.

(Olinda, 2. 11. 2020)

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CANDANGO: MEMÓRIAS DO FESTIVAL

Eu comecei a ver a 44ª Mostra SP pelo filme “Glauber, Claro” e estou terminando pelo filme “Candango: Memórias do Festival”, os dois brasileiros. Vi uns 15 filmes e todos eles dentro de uma linha o máximo possível do pensamento dialético positivo, não negativo. Embora, segundo Adorno, a dialética negativa seja a correta…O certo é que essa Mostra tem uma excelente curadoria e podemos dizer que faz uma autêntica seleção. Mas, por exemplo, fui inscrito como jornalista na cobertura, e não utilizei as cabines que foram feitas. Primeiro, porque eram muito cedo de manhã, período em que eu estava dormindo. Segundo, mais verdadeiro, é que me parece que se existiam 189 filmes disponíveis, não tinha por que selecionar uma dúzia deles para mostrar aos jornalistas. Por que não dar uma cota de tantos filmes e deixar ao jornalista a escolha do que quisesse? Então fiz isso por minha conta.

“Candango: Memórias do Festival” é um bom documentário do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro feito por um brasiliense jovem, Lino Meireles. Principalmente levanta a questão de que se trata de uma mostra realmente aberta ao cinema brasileiro e além de tudo sempre foi um ponto de apoio contra a ditadura militar. O que realmente aconteceu. O Festival teve essa função e esperamos que agora continue e o próximo será de 15 a 20 de dezembro próximo. As exibições serão através do Canal Brasil e do Brasil Play. Esperamos que consigam manter a tradição.

No documentário poderia ter havido uma maior pesquisa. Em vez de muita conversa direta, poderiam aparecer cenas do próprio pessoal que participou e dos quais muitos já estão mortos. Por exemplo, há uma referência, alguém falando que na piscina do Hotel Nacional tomou banho a atriz Leila Diniz. Mas o bom mesmo seria mostrar cenas da Leila na piscina e que devem existir em algum acervo. Mas o rapaz inclusive procurou bem analisar a participação dos brasilienses antigos e atuais no Festival. As farras acontecidas no Hotel Nacional também devem existir documentação. Lino Meireles declara que quis fazer um filme popular e não para cinéfilos, mas eu não acredito que alguém não cinéfilo veja esse documentário a não ser por acaso. Pernambuco, ou melhor Cláudio Assis, apareceu com destaque.

(Olinda, 4. 11. 2020)

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