Sem categoria

Carlos Alberto Mattos: Onde Coringa (des)encontra Bacurau 

Para além do título de sete letras, em vários aspectos Coringa me fez pensar em Bacurau. Ambos vêm causando hype comparável na plateia brasileira com histórias catárticas e comentário social banhado em sangue. Os dois têm personagens que reagem com violência a ataques de uma elite cínica e predatória. A diferença fundamental é que, em Bacurau, a reação parte de uma comunidade, enquanto em Coringa o agente é um indivíduo que, sem perceber, catalisa um movimento coletivo.

Por Carlos Alberto Mattos

Coringa

São expressões de suas respectivas culturas: o gregarismo latino-americano e o individualismo norte-americano. O filme de Kleber e Juliano mostra a força da união dos fracos, que se tornam heróis de si mesmos. O blockbuster de Todd Phillips dispara um turbilhão anárquico para gestar um supervilão. Uns apelam à droga psicodélica, outro à doença mental.

Há uma ambivalência moral por trás desses contos de vingança. A violência “santa” de Bacurau, ungida na mitologia do cangaço, é positivada como garantia de sobrevivência do caçado. A de Coringa se apoia na argumentação social para explicar o surgimento de um malfeitor.

A ambiguidade está presente nos dois casos. Em Coringa, está na reedição da fábula do palhaço triste, na falta de graça do candidato a humorista, na ironia com a própria imagem do sorriso que empesteia as redes sociais com seus emojis. “É muito difícil ser feliz o tempo todo”, queixa-se Arthur Fleck num dado momento. Suas danças, entre Michael Jackson e o butô, assim como sua risada psicótica, são a própria celebração da dor como forma de vida.

À condição de incel (celibatário involuntário, subcultura de frustrados sexuais que vem perpetrando crimes ultimamente) Arthur soma a de pária social, vítima tanto de brancos ricos quanto de negros pobres, de estranhos e de gente próxima. Ele vive numa bolha de ilusão, mentiras e bullying permanente. Gotham City inteira parece conspirar contra ele em sua decadência urbana que lembra a Nova York dos anos 1970.

Aquela era a época do motorista de Taxi Driver e do angry man de Rede de Intrigas, que estão para Arthur Fleck como Lampião está para Lunga e o povo de Bacurau. Robert De Niro, no papel do apresentador de TV, parece um lembrete dessa filiação. Há quem puxe a ficha de Kubrick e Laranja Mecânica, mas não precisamos chegar a tanto.

Coringa e Bacurau falam ao passado e ao presente de seus respectivos países por meio de suas cidades fictícias. No brasileiro, porém, a cidade é puramente vítima e tem uma harmonia idealizada. No norte-americano, a cidade distópica e cruel é a vilã que produz Joker.

Os dois filmes se aproximam também por uma impressão de falsa complexidade. Uma certa esquematização prevalece na divisão entre algozes e vítimas, bem como no engendramento da revanche e no encaminhamento dos espectadores rumo ao brinde da catarse, ainda que incômoda.

Coringa impressiona sobretudo pela espantosa performance de Joaquin Phoenix e pela concepção impregnante de cada cena. Os fãs de Batman devem se deliciar com o encontro entre Arthur e o pequeno Bruce Wayne, de quem se tornará a futura e maior dor de cabeça. As testemunhas dos protestos mundiais e do ativismo dos Anonymous dos anos 2000 podem gelar diante de um trem de metrô coalhado de palhaços.

A porosidade de Bacurau e Coringa, sua capacidade de produzir ressonâncias cinematográficas e extra-cinematográficas chegam a superar suas qualidades intrínsecas, que não são poucas. Por isso estão enchendo os cinemas e reverberando na sociedade.