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Aidenor Aires: o sabor da morte

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Os humanos andam buscando hábitos saudáveis. As estatísticas dizem: vivemos mais. A expectativa vital roça os oitenta anos. Embora os números não sejam revelados, contingentes enormes morrem todos os dias. Ali, um furacão; além, um terremoto; algures, um desastre ecológico. Mesmo assim, a natureza enferma não consegue manter os suprimentos adequados de morte, para conter as marés de nascimentos, principalmente entre os pobres do mundo. Inventam-se, a cada dia, novos processos. Morre-se de bala, facadas, acidentes de trânsito, poluição. Menos por obra da natureza. Teimosos em viver, entregam-se às promessas da medicina varejista, das especialidades mínimas. O candidato a enfermo entra na linha de produção, passa por exames, análises, especializações esdrúxulas, até que as máquinas de última geração lhe encontrem uma merma qualquer: um tumorzinho, um nódulo ou uma doença metabólica. Pronto, fica prisioneiro do sistema até o fim dos dias. Temerosos da inimiga das gentes, a iniludível do poeta Bandeira, esforçam-se para mantê-la à distância. Rituais, terapias, aplicações e a farmacopéia com acenos de longevidade. Esfalfam-se os pobres perecíveis em ginásticas, corridas, caminhadas, academias, fornos, esoterismos, rituais, tudo para conseguir estar no presente, desfrutando seu naquinho de vida, roído de todo lado por inúmeros inimigos. Na contramão vão os adeptos de Tânatos. Não meros suicidas, mas estetas da morte. Querem fazer a passagem de forma glamurosa. Num feérico acidente provocado em roleta russa urbana, atolado nas sensações imaginárias das drogas. Uns vertiginosamente. Outros com a calma paciência dos iogues. Envenenam-se aos poucos, prazerosamente. Entre todos, os fumantes. Mesmo depois que o hábito perdeu seu charme e sofre perseguições das leis e dos demais viventes, seus adeptos continuam fiéis. Quanto mais implicam, deblateram, excluem, mas se esforçam em malabarismos, ousadias e truques para garantir o que julgam ser seu direito de matar-se, matando também os circunstantes. Navegam com facilidade entre proibições. Nos lugares de ajuntamento público, nos bares, é que  estão mais insinuantes. Ali está a área de não fumantes. Os avessos ao hábito descansam, tomam uma cervejinha, uma tigela de açaí com granola ou um sanduíche natural. Ao lado, uma mesa reúne quatro chaminés ambulantes. Mal se sentam, arrancam seus cigarros, acendem, tragam e vão atirando a fumaça no ar da vizinhança indignada. Não assopram sua névoa malcheirosa contra os rostos dos comparsas da mesa fumegante. Colocam as mãos para trás, ocultando o pito e, de tempo em tempo, viram o rosto, desfrutam uma longa tragada, gozam e arremessam a névoa enfermiça para trás mergulhando os próximos involuntários na atmosfera mortal. Homens, mulheres, outros sexos opcionais. No relax da happy hour, uma carícia, um beijo estala o encontro das bocas nicotinadas. Quase felizes, esnobam no ar da tarde-noite seu lírico deleite de saborear a oportunidade única de morrer.