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Aidenor Aires: as cigarras de outubro

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Mormaço. A chuva apenas ameaça. Padecemos desejo de líquidos afagos. Penamos saudade de ontens quando, às escâncaras, abriam-se as portas do céu Em trovões e relâmpagos. Goiânia balouçava como uma arca nos braços das tempestades. Chuvaradas que abismaram Eli Brasiliense em seu Chão Vermelho. A chuva expulsava calor de sauna que envolvia a campina onde engatinhava a cidade. Outubro então se enchia do colorido dos flamboiantes. Avenidas Araguaia, Tocantins refulgiam de seu vértice na Praça Cívica até o Bairro Popular e o Bosque que ia ser do Mutirama. Um desperdício de cores, dois rios iluminados pela palheta da primavera. Era um privilégio ouvir o cantar das cigarras. Sons de órgãos, violinos, celos, pícolos esganiçados e veludosos oboés enchiam o ar, os ouvidos e impregnavam, no concerto único, as criaturas vivas, as mortas e até as desnecessitadas de vida. As cigarras invisíveis no mimetismo, agarradas às cascas das árvores aproveitavam os instantes de sol para vingar os longos silêncios. Os dias, meses e até anos de demora subterrânea. O curso das metamorfoses surdas de repente se interrompe e os cantos preservados na espera explodem. Urge deixar sua mensagem na primavera úmida. Desfrutar do solar encantamento e realizar seu ser de solidão e espera. Só há tempo e vida para cantar um canto único. Celebração de amor e morte. Porque, dizem os entendidos, que as cigarras, depois da existência larvar, emergem na primavera para curtos vôos, intenso esponsal e repentino excídio. Depois de encher o mundo com seu canto onipresente, chamando pela companheira, acasalam-se, depositam seus ovos nas cascas das árvores e retornam ao silêncio sem retorno. Outras gerações de cigarras povoarão os ares futuros, enquanto houver terra, árvores e consentir a sovinice humana. Porque já vão escassos os flamboiantes, as mungubas e ralos os bosques. A sanha imobiliária que destruiu a cidade original espetando edifícios e rasgando ruas também feriu de morte os bichos do cerrado. Já não se ouve o canto das seriemas sobre os cupinzeiros. As três potes e sabiás nas madrugadas do Bosque dos Buritis. Escorraçaram os micos e passarinhos que animavam o Jóquei Clube. Apagaram as saudades de quem viu a cidade nascer. Destruíram o encanto do encontro da metrópole com  a madre rural. Por isso não podemos ignorar as cigarras. Chegam nestes dias como uma esquecida voz de infância, uma promessa de semeaduras e flores. Como os cantores, os seres amorosos e os poetas precisam permanecer. Lembrarão, a cada primavera, nossa carência de luz, de chuva, de auroras amareladas de pólen. E nos lembrarão de que há em nosso ser exilado um desejar de criança, um querer de amantes, um aspirar de eternidade. Há um paralelismo sublime entre nossa vida e a das cigarras. Também emergimos de imensos silêncios e temos um átimo para buscar o amor, para cantar, até que se acabe o breve dia. Exígua luz para existir, cumprir o canto e pensar eternidades. Também ansiamos pela volta da primavera. Como as cigarras.