“A nova utopia” de Régis Bonvicino

O autor escava as imagens e sonoridades do mondo trash alcançando sua genealogia mais profunda e sinistra

Foto: Divulgação

Vem de sair A nova utopia, do poeta Régis Bonvicino (Quatro Cantos, 2022). Cada poema, trabalhando o estado de coisas do mundo, é uma espécie de bomba feita de matéria recolhida do realismo capitalista. Tal noção (realismo capitalista), nomeada pela exposição de Sigmar Polke e Gerhard Richter, de 1963, foi traduzida por Mark Fisher como stalinismo de mercado. Dinâmica de vida e trabalho que acaba por relegar a existência a um acúmulo de precarizações, patologias psíquicas etc.

O poeta constrói as cenas verbais violentas da realidade global, ligando seus polos contraditórios em um curto-circuito poético. Algo que logo se lê na peça de abertura do livro, ironicamente intitulado “Arte”: “é o mendigo que, mão aberta, não pede esmola / é um MSF – menino sem futuro – / amarrado no obelisco / depois de roubar um mendigo / é um faquir com fobia de pregos (…) é um relógio sobre uma lápide (…) é um cara algemado, disparando contra a própria cabeça / é um artista se entregando à polícia” (p. 9, 10 e 11). Ou, de modo ainda mais (contra-)direto em “A nova utopia (7)”: “Crack é a vitória. Um mendigo puxa uma pedra na lata amassada de Coca-Cola. O novo utopista batalha pela liberdade entre muros” (p. 110).

Bonvicino elabora, então, sua linguagem a partir da afluência de realidades residuais que compõem e atravessam as cidades, talvez de modo semelhante a Zbigniew Herbert em sua “Crônica de uma cidade sitiada”: “registro – sem saber para quem – a história do cerco (…) só nos deixaram neste lugar a ligação a este lugar (…) se perdêssemos as nossas ruínas ficaríamos sem nada”.

Leia também: Mostra do cinema chinês atual

O registro da vida presente torna-se, inevitavelmente, um gesto irônico, de deslocamento, pois expõe exatamente o reverso das utopias postuladas pelas vanguardas das civilizações ocidentais, como liberdade, igualdade, progresso, democracia. Assim, a nova utopia “tem seu próprio dicionário”: “A nova utopia comunga, com moderação, ideais materialistas. A nova utopia morre de pé. É, ao mesmo tempo, um duty free e um detox financeiro. A nova utopia é nosso dever como cidadãos. A nova utopia exalta a sustentabilidade das empresas. (…) É um showroom de exuberâncias naturais. (…) É a viúva de Jorge Luis Borges detalhando seu processo de criação. (…) É uma miríade de franquias de poetas premiados. É um poema à altura de seu tempo” (p. 21 e 22).

O autor escava as imagens e sonoridades do mondo trash alcançando sua genealogia mais profunda e sinistra. É o que se observa, por exemplo, em “Sonoridades”, que poderia ser incluída entre as catorze peças intituladas “A nova utopia”, o dínamo do livro. Porque “Sonoridades” incorpora de modo contundente a antífrase sugerida pelo título: a nova utopia é a própria ausência de utopias na era dos simulacros e simulações.

Assim, Bonvicino transforma o trovador bélico Bertran de Born no terrorista de Nice, Al Bertran Bouhel, Mohamed de Born, que jogou um caminhão de 19 toneladas com semirreboque contra a multidão durante a festa, em 2016, da queda da Bastilha. O texto, entre poesia e prosa, possui um ritmo musical vertiginoso, combinando versos do poeta provençal, em língua occitana, com anotações estereofônicas sobre imagens banais do cotidiano somadas às ásperas onomatopeias do pânico e do atropelamento:

“neon, vaza Coca-Cola pelo ouvido de um marroquino, toldos vermelhos, cadeiras nas varandas, pela pista em zigue-zague, cus agora arregalados na rua, acelera, disparos, disparos, um braço, cabeças arrancadas boiam no mar, as marcas dos pneus do caminhão na pista, mas o big mouth, ele paga em ketje, cai o outdoor do anúncio da “Desperados flare”, o sabor do malte, labaredas nos postes, sapatos espalhados pelo asfalto, Bertran de Born, o veterano, galinhas no banheiro, pustela en son olh e cranc, pústulas detonam as guerras, granada no bolso, ele paga em ketje, shopping bag, Hasna cosmetic, halal – pouco tempo depois, lâmpadas na colina, intermitentes, luzes na orla, tipo led, lâmpadas na colina velam todos os mortos que a cidade cala scréech, ié, bang, boomp, beep, praa, allahu, bow, bbrrzz, raqqua, assuk, zakat, ratatá, bash, um pássaro migra de tédio, Papiols, jogral vil, vá cantar essa merda em outro lugar.”

Leia também: Filhos do ódio e o mês da consciência negra

Os versos de A nova utopia questionam a própria poesia com um novo tipo de metalinguagem, debatendo acerca de sua pertinência: “não tem mais nada, não tem spleen / só tem porrada” (p. 59), “morrer afinal é lucro / o que se apaga no poema / dá de cara com o mundo” (p. 84) e “fila pra pegar lascas de ossos / é a vida sem o alívio de um instrumento” (p. 146). Há vários outros exemplos.

Talvez o poema que melhor se contraponha ao título do livro, na mesma medida em que o afirma, seja “Make it old” – a nova utopia é feita de uma miríade de utopias práticas, vendáveis, prontas para serem consumidas e replicadas ao infinito. O que se torna velho? O futuro, tal como projetado pelo futurismo italiano, cujo fim foi o fascismo? Mas também o futurismo dos russos, derruído em um comunismo insolvente? Franco “Bifo” Berardi demonstrou em Depois do futuro que o futuro ficou ultrapassado. No entanto, ele perdura feito um morto-vivo no presente, metamorfoseando-se em realidades disparatadas.

É essa a realidade vista pelo poeta ao percorrer Rappalo (Ligúria, Itália), onde Ezra Pound residiu por mais de duas décadas. Na peça há os militantes da CasaPound, neofascistas, que Régis imagina à revelia do “CEO crédulo, do oeste selvagem de Idaho”:

“Antes de chegar ao Palazzo Baratti, vejo partidários da CasaPound, bandeiras com tartarugas: o casco como símbolo de casa. Os adeptos uivam na rua o refrão de uma faixa de uma banda neofascistapunk: “Chacinadocinto”: fiveladas na cabeça, chicotadas nas costas, o pino da fivela no olho do cu. Gritam: “A Itália aos italianos de sangue”, “Com usura homem nenhum há de ter casa de boa pedra”. É um rock around the clock. Um quebra-cabeça com regras. Em seguida, deixam uma coroa de louros na casa de Olga Rudge, no topo de Sant’Ambrogio, onde ele foi preso pelos partigiani. La guerra é brutta. Ao despertar, rente à boca do esgoto da cela, se levanta, exangue, abraça um reflexo, mastiga frases. Talvez mastigue fezes. Uma águia sobrevoa a fileira das jaulas do presídio. A CasaPound, um partido neofascista, a merda fascista, agora à revelia do Chief Executive Officer, o CEO crédulo, do oeste selvagem de Idaho e dos subúrbios da Filadélfia” (p. 103-104).

Leia também: Maria e a sua alma

A ocupação colonial high-tech da globalização contemporânea não poupa ninguém. “Epitáfio”: “Privatized Futures / Dia após dia / da sala para o quarto / e vice-versa sem atalhos” (p. 139). E a instituição militar de Estados que mantém os cidadãos em um permanente “estado de sítio” e guerras: “a própria coerção tornou-se produto do mercado. A mão de obra militar é comprada e vendida num mercado em que a identidade dos fornecedores e compradores não significa quase nada. Milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar” (Mbembe, 2018: 53).

Na arte de Régis Bonvicino, nem mesmo os pássaros, que habitam as paisagens mais desoladoras, sugerem algum idealismo lírico. Pelo contrário, o autor realiza uma verdadeira política da composição: revitaliza a força criadora da ironia, uma nova ironia, na medida em que seus poemas manejam uma possível imagem deste mundo, sem poetizações arcaicas ou discursos sobre ele.

Em A nova utopia, Régis mapeia e disseca um primeiro tipo de utopia (autoritária, transcendente) que define as novas condições de normalidade. Ao mesmo tempo em que propõe possibilidades de revolução pela linguagem ao saturar suas contrariedades em novas estruturas e vocalizações: “Um rato dilacerado na pista / sacos de lixo abertos pela chuva: / não é o cúmulo, é apenas acúmulo, / um trovão detona a nuvem / o que está no poema não está no mundo” (p. 91-82). Terminada a leitura do livro, o leitor defronta-se com uma complicada indagação lançada pelo poema que, então, encerra o livro. “Aposta”: “o céu se abre /o sol bate no ipê/ gôndolas dentro das lojas/ o vigia apaga a luz/ notas e moedas no caixa/ quem paga pra ver? “

Autor