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Urariano Mota: Um beatle em Água Fria 

Antes que os Beatles chegassem, o bairro de Água Fria era a terra do xangô de Pai Adão, o lugar do barbeiro Luiz, que vinha a ser líder de célula comunista, e o espaço do artista Ginu, que criou o boneco Professor Tiridá com espetáculos em frente ao Mercado Público. O bairro não era bem um jardim de paz, pois aqui e ali se matava inimigo à faca. Mas de modo certo e claro, Água Fria era um mundo que falava português suburbano do Recife.

Por Urariano Mota*

Recife

Nesse tempo, em 1949, nasceu Severino, que os suburbanos chamavam de Sivirino, e os amigos na rua apelidaram de Biu. Assim ele viveu até a adolescência, quando se transformou em Bill, pouco depois do 1º de abril de 1964, época em que os americanos e o inglês passaram a ser mais que a moda no Brasil. O diabo era um problema na fala dos nativos, pois a pronúncia de Bill lembrava mais o vulgar Biu. Então, para evitar equívocos, ele se fez mesmo Billy na primeira juventude. “Menino inteligente”, falava a sua mãe.

Daí em diante, e já em 1967, Billy era um jovem muito, muito “interessante”, essa palavra-trem que tudo significa. Num surto, num salto, ou num surto e num salto, Billy começou a aprender a tocar violão, mas com propósitos nada seresteiros, como havia sido até então, quando se tocava para encantar pretendidas namoradas nas janelas. Não. Bastava de tempos atrasados. Billy ambicionava uma guitarra elétrica. Apesar das dificuldades de pobre, ambicionar guitarra era o mais fácil, porque Billy queria mais e muito mais: queria mesmo era virar Beatle no Recife. Uma ambição bacana, uma pretensão legal, digamos.

Mas já aqui, na sua primeira ambição, ele se deslocava do bairro de Água Fria, pois desejava ser O Rei dos Beatles do Recife, ou, quem sabe, Rei dos Beatles do Brasil. Num delírio mais louco, do mundo. Pode parecer ridículo, mas Billy se fazia muito real no reino da sua fantasia. A ilusão, ele julgava, era mais bela que o rosto de espinhas e olhos de sapo com peruca, refletido no espelho. Tal imagem física e atrasada à parte, a ilusão se traduzia também para os seus admiradores, ou “admiradores” de Água Fria, Cajueiro, Fundão, Beberibe, Arruda, grande região suburbana do Recife.

No começo, saudavam-no com um riso, “Bile!”, depois com um sorriso, “Bile?”, até o dia em que atingiram a satisfação com o Beatle fora do cinema que podiam ter: Billy, enfim, era o astro mais parecido com eles mesmos, da jovem guarda de Pernambuco. E Billy virou vanguarda.

Então Billy, em seu plano de além-fronteiras, passou a aprender o inglês da forma que pudesse. Decorava as músicas do disco Help!, via o filme dos Beatles no São Luiz, passava os fins de semana no cais do porto do Recife. Com toda atenção, olhava o modo de andar, de gesticular dos tripulantes dos navios mercantes como um aprendizado de cultura. Ali, aos domingos, saudava todo e qualquer gringo com um hi!. Tão desinibido, hi!. Para ele, os falantes estrangeiros na língua inglesa eram a pátria da fraternidade, o país onde todos os jovens eram iguais, desde que possuíssem cabelos compridos e amassem os Beatles. E amavam, e cantavam I Wanna Hold Your Hands.

Daí, tão íntimo, ele perguntava ao primeiro que lhe despejasse um olhar condescendente:

– Where are you from?

Respondiam-lhe, quando lhe falavam, algo como “fáqui ú”, ou “foquiú”. Mas para os rosnados, resmungos tão rápidos que não davam nem tempo para repetir a faixa no disco. Billy sorria, porque sorrir era simpático, necessário, e o prêmio querido ao fim valia a pena. Pois ele não era fáqui nem faquir. Às vezes, um cozinheiro negro lhe respondia com um sanduíche de carne, em um sorriso mais pátria universal. O beatle Billy era todo agradecimento: tênquiú. O cozinheiro mais lhe sorria.

Assim como a lei da gravidade, há uma lei da natureza até hoje não derrubada: a persistência, a teimosia, a vontade, que ao resistir a tudo, faz maravilhas. Billy, para decorar palavras e frases, usou associação de ideias, ainda que lhe parecessem custosas, porque alongavam o caminho imediato. Mas era um sucesso! Mesmo sem saber o nome desse caminho de aprendizagem, nem como isso se dava, a sua intuição o guiava para a ciência antes da ciência. Então ele notou que a palavra mais usada nas canções dos Beatles era I. “É fácil. Quando o cara leva uma pancada, grita: ai!. Eles cantam Eu em inglês. Ai, eu!”.

Num dos feitos mais memoráveis de seu rumo às estrelas, Billy chegou a cantar o Hino Nacional em inglês. Não precisou pensar muito para exibir aos fãs a mágica que era falar em outra língua os versos patrióticos:

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos
Brilhou no céu da pátria nesse instante

Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte
Em teu seio, ó liberdade
Desafia o nosso peito a própria morte!

Ó pátria amada
Idolatrada
Salve! Salve

Foi até fácil. Do patriotismo maluco, Billy construiu estes versos de uma patriotada só:

Heard from Aipiranga the placid margins
Of a heroic people the reverberating cry
And the sun of liberty in sparkling rays
Shined in the sky of native country in this instant

If the pawn of this equality
Obtain to conquer with a strong arm
In your breast oh liberty
Defies our breast the proper death

Oh motherland loved, worshiped
Hail, hail!

Well, do que reclamam? Além de cantar, ser cabeludo, divulgar o hino nacional na civilização, ainda queriam que Billy falasse versos perfeitos em uma língua rock? Menos. Concedam uma compreensão à experiência de 1967. Billy jamais poderia sonhar em ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Penso que nem isso, de modo mais longínquo, lhe passou pela cabeça. Naquele tempo, embaixadores eram pessoas de altíssima cultura, e sobre a embaixada em Washington se projetava a sombra do imenso Joaquim Nabuco. E convenhamos, esse é um espectro que se prologa até hoje sobre todos hambúrgueres dos Estados Unidos – não existe nem mesmo um hot dog de salsicha à Joaquim Nabuco. Então. So, o que queriam? Não culpem Billy pelo impossível de ter em 1967 o fascínio do poder selvagem de 2019.

Billy só queria ser um Beatle. Isto é, no meio do caminho havia uma guitarra. Que pedra!

Mas quanto era difícil ser um beatle com guitarra. Para os suburbanos recifenses, então, era uma luta sem qualquer possibilidade de trégua. A guitarra tocava permanente nos sonhos, acordados ou noite adentro. Sem conhecer a poesia de Manuel Bandeira, Billy vivia esta paródia da Balada das três mulheres do sabonete Araxá:

Oh, uma guitarra para tocar às 4 horas da tarde!
O meu reino por uma guitarra pra tocar no Recife!

Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei?
queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, monarca. Eu só quero uma só guitarra pra tocar:
O meu reino por uma guitarra pra tocar no Recife!

Pois como era possível ser um beatle sem guitarra elétrica? De que adiantava imitar o inglês de um natural de Liverpool sem a maravilha nos braços? Era o mesmo que I Wanna Hold Your Hands sem as mãos da amada. So. Sozinho então, Billy mal podia viver sem mencionar o seu sonho despudorado. “Eu quero pegar nas mãos uma guitarra”. Estava tarado pelas belas curvas elétricas, nós o vemos hoje.

Neste fim de novembro de 2019, observo que uma guitarra barata ou beatle, pode custar até mil reais. Mas a preços de 1967 era mais cara, quase impossível para um suburbano de Água Fria. Well, como possuir então uma fabulosa guitarra? Comprá-la era entrar em um círculo vicioso, pois um jovem desempregado apenas poderia comprá-la quando ganhasse muito dinheiro, e para isso, quando tivesse uma guitarra. E como não a possuía, Billy não era esse jovem sonhado, era o Billy da Rua Japaranduba tocando-a no imaginário, enquanto ouvia o disco. Ele sabia até as posições, quando a tivesse. Ele já estava pronto, de cabelos grandes e produzidos em fórmulas maravilhosas, que a ninguém contava. Só faltavam a pretendida e um paletó de lamê.

Então um deus suburbano lhe apontou a saída. Se a guitarra não vem a Billy, Billy iria à guitarra.

* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.