Neste 13 de outubro, faz 51 anos que o nosso maior poeta se foi. Com Manuel Bandeira temos uma viagem íntima nos poemas que nos abalaram desde quando éramos adolescentes. E nos dizíamos, surpresos: “Então isto é poesia!”.
Por Urariano Mota*
Publicado 13/10/2019 00:32 | Editado 13/12/2019 03:29
E por isso mesmo, por força dessa revelação, passamos a ser amantes de Porquinho-da-índia:
A parte que vem da razão nos fala que por trás desses versos existe um homem experiente na arte de criar um poema, um ser feroz que fere porque é poesia. Esse poema cresce pelo pequeno, pelos diminutivos – porquinho, bichinho, limpinhos, ternurinhas –, até explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo da relação entre uma cobaia e o amor: “o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”.
Porquinho-da-índia é um poema escrito antes de 1930, mas um verso diz: “Levava ele pra sala”. Isso até então não era poesia nem português. Até hoje, os gramáticos de fama condenam quem usa “levava ele”. Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas conforme a norma culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que um “levava ele”, sentenciariam os asnos de 1930 a 2019 e vindouros.
Há pouco, lembrei de uma lição de poesia que Manuel Bandeira recebeu desde a infância. Copio do seu livro Itinerário de Pasárgada, que recomendo como uma lição fundamental de poesia e literatura:
“Tive uma choça, se ardeu-se.
Tinha um só dente, caiu.
Tive uma arara, morreu.
Um papagaio, fugiu.
Dois tostões tinha de meu:
Tentou-me o diabo, joguei-os.
E fiquei sem ter mais meios
De sustentar os meus brios.
Tinha uns chinelos… Vendi-os.
Tinha uns amores… Deixei-os.”
Que lição de poesia, vinda de um homem analfabeto! Mas é preciso ser um artista de mente aberta, com o brilho do gênio para compreendê-la. Em outros, passaria batida, ou se a lembrasse, não a julgaria digna de citação. Desprezaria o ouro por preconceito. Mas Manuel Bandeira era grande poeta pelo justo motivo da sua sensibilidade elástica, plástica.
A propósito do seu universo sem fronteiras, vale a pena publicar trechos de uma conversa que tive com André Cintra, jornalista, escritor e editor de Cultura do Vermelho, que copio sem aviso ou autorização:
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente
Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz já tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua.
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Eu: Grande crítico literário também. O que ele escreveu sobre Ascenso Ferreira ninguém havia notado antes. E destacava em Ascenso, como destacou em compositores de música popular, trechos e sacadas fora do universo dos livros, fora da academia
Fora da conversa, anoto que Manuel Bandeira observou em Ascenso Ferreira uma interpretação/leitura do poema além dos livros. Mais preciso, aqui:
De volta à conversa:
Fora da conversa, copio de modo literal o que o poeta escreveu:
E volto à conversa deste sábado:
Eu: Essa não! Não sabia. Em tempo: o poeta era um homem de gênio, cultíssimo, erudito, que não fazia pose de erudição. Ele era solteiro, solteirão, por conta da tuberculose da juventude, que ficou como uma marca. Mas um amante sem hora marcada, na sua solidão. Tu lembras daquele poema para Jaime Ovalle? “(Na solidão,) pensando na vida e nas mulheres que amei”
E encerramos por enquanto a nossa conversa. Motivado, copio esta solidão em poesia:
Até este rompimento, definitivo:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare.
– Não quero saber do lirismo que não é libertação.
Bandeira é autor de versos que atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da gente culta. Viraram quase uma reflexão, um provérbio. Exemplos disso vêm sem muita pesquisa: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, ouvimos, quando nada mais resta fazer. “Foi o meu primeiro alumbramento”, e vejam que palavra bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos apreendemos de imediato o significado, porque o poeta assim nos fala depois de “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho / Fiquei parado o coração batendo”. Assim como também apreendemos pelo poema o sentido de “Vou-me embora pra Pasárgada” – fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra utópica de felicidade.
Essas coisas não se escrevem por dom ou presente dos deuses. Versos assim se conseguem ao longo de muita vida, estudo e trabalho. A linha do poema de Bandeira parece vir curtida, decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em voo livre de condor, antes plana, paira, na altura, contraditoriamente parecendo voar baixo, ao nível do chão, do cotidiano, do minúsculo dos dias.
Nele, o sentido do poema está antes no verso.
Essa linha lapidar que sobrevive ao poema, à circunstância, não se encontra em outro poeta brasileiro com a frequência com que se encontra em Manuel Bandeira. “A vida inteira que podia ter sido e que não foi” é um verso que nos fica, para sempre, é uma luz que guardamos até mesmo sem conhecer o poema Pneumotórax. Até mesmo sem saber o último dia do corpo físico do poeta.
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.