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Elder Vieira: Os cem anos da poderosa poesia de Cecília Meireles 

Quando se fizer o inventário crítico e honesto da poesia brasileira, será verificado que as autoras mulheres nele figurarão como vítimas de ignominiosa injustiça. O papel por elas desempenhado na renovação de nossas letras, desde os primórdios do estabelecimento dos cânones, nunca foi, até o momento, devidamente aquilatado e destacado. Cecília Meireles é um destes casos que sofrem de insuficiente atenção.

Por Elder Vieira*

Cecília Meireles

Em que pesem importantes abordagens de ícones dos estudos literários, como Antônio Cândido e Alfredo Bosi, são ainda poucos os caracteres despendidos com ela – e com Hilda Hilst, por exemplo –, se comparados aos dedicados a um Oswald, um Drummond, um Bandeira ou um João Cabral. E Cecília tem inegável protagonismo na renovação não somente da literatura de língua portuguesa, como da vida intelectual brasileira: ela é uma das signatárias, ao lado de Anísio Teixeira e outros eminentes professores, do Manifesto da Escola Nova, marco da renovação do pensamento educacional pós-Revolução de 1930.

Cecília Meireles estreou como poeta em 1919, aos 17 anos, com o livro Espectros, opúsculo composto de 17 sonetos em rigorosa chave parnasiana e com notas sutis de simbolismo. A obra ganhou apresentação e incentivo do professor da escritora na Escola Normal, Alfredo Gomes (Cecília formou-se professora). Ele não só escreveu o prefácio como também apresentou o livro a João Ribeiro, importante crítico literário do jornalismo à época. Num texto em que resenhava mais outras quatro obras poéticas então recém-lançadas, o colunista vaticinou futuro promissor à jovem versejadora .

Apesar de ser motivo de bons augúrios, o livro de estreia de Cecília foi relegado ao esquecimento pela própria autora. Ela não o faria constar em nenhuma listagem de suas obras, nem o mencionaria em ocasiões propícias, como homenagens e comemorações. É como se ele, por seu corte parnasiano, não merecesse pertencer, nem mesmo como precursor, à linhagem dos poemas nascidos da pena que a autora passaria a empunhar como uma das integrantes da chamada “Segunda Geração Modernista”.

Recentemente, estudiosos e editores resolveram enfrentar essa injustiça. Tem aí uns seis, sete anos, a Global Editora lançou uma bonita edição da obra. E nós, do “Prosa, Poesia e Arte”, do Portal Vermelho, resolvemos, no centenário de sua primeira publicação, nos somar a essa cruzada. Ao ler o livrinho, convencemo-nos, como se convenceu o Prof. Henrique Marques-Samyn, autor do prefácio à 3ª edição feita pela Global, de que, com ele, “nascia um dos maiores nomes da poesia brasileira”.

Livro centenário e premonitório

Espectros abre com soneto de mesmo título. Por meio dele, Cecília, como em dedicatória, estabelece o tema e o clima de sua pequena obra: cantar, em alexandrinos, e em forma fixa, o intemporal, o mito – o que há nele de essencial e permanente, numa ambiência entre o fantasmal, o onírico e o maciço da memória.

Os pares de quartetos e tercetos do poema dialogam, evidentemente, com o poema O Corvo, de Edgar Alan Poe, cujas estrofes têm a mesma textura. Vejamos, primeiro, Espectros, de Cecília:

Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremecem tudo,

Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda,
Erguendo o olhar, exausto a tanto estudo
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,

Da lâmpada à inconstante claridade
(Que o vento ora esmorece, ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sóis)

Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva,
– Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.

Agora, reparemos na primeira estrofe d'O Corvo, de Poe, em tradução de Fernando Pessoa:

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.

O poeta norte-americano mergulhará, montado num corvo, num atormentado torvelinho interior; já a adolescente brasileira, com e a partir de seu poema inaugural, fará emergir e fixará, por meio de tensões, arquétipos fugidios da condição humana.

Enquanto o poema de Poe mais expressa do que representa, os poemas de Cecília mais representam, sem, contudo, deixar de expressar uma tensão latente, que lá está, mas não se alcança senão pelas imagens descritas. O segundo poema, sem título, assim começa:

Defronte da janela, em que trabalho,
Nas horas quietas, em que tudo dorme,
Sobranceira e viril, como um carvalho,
Alevanta-se espessa árvore enorme.

E assim termina:

E, posta a contemplá-la, esta alma cuida
Ver sob o azul do céu, diáfano e brando,
A fronte erguer, leonina, o último druida.

Aqui e em outras peças, Cecília maneja, com impressionante maestria para a idade e como um experimentado parnasiano, acentos e rimas, e os põe a serviço da descrição e construção lógica da imagem. Evoca um druida, mago de celtas e gauleses de priscas eras, encarnado numa árvore que balouça defronte da janela do cômodo em que estuda e escreve.

Nenhum símbolo, talvez somente a pedra, encarna tão bem o tempo, as eras, quanto uma árvore, ainda mais comparada a um carvalho. Árvores, seus troncos e raízes, têm a ver com o tempo, e muito mais a ver com cultura. E o druida, feito em árvore ao vento, torna-se, na economia do poema, uma das mais eficazes personificações da busca do conhecimento – busca, a um tempo, selvagem e branda.

Numa entrevista de 1964, concedida a Pedro Bloch, disse Cecília, aos 63 anos: “Vivo constantemente com fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber. Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura, para mim, é emoção sempre nova”.

Os 17 sonetos de Espectros ressumam erudição, elevada competência linguística, domínio impressionante da técnica de versificação. E já dão notícia da grande poeta em que se tornaria Cecília Meireles.

Poeta tomada do sentido do sublime, é capaz de comunicá-lo ao leitor. Nada afeita a gracinhas sonoras e gráficas, a piadinhas de salão decadente, Cecília se fez moderna e eterna, justamente por não abrir mão da grandeza do verso. Ela sabe ser solene, sem ser pedante. Não abandonou, em favor de escatologias estéreis, o lavor de joalheiro que exercitou nos primeiros versos. Não aviltou a dignidade necessária da poesia nem mesmo quando escreveu para crianças.

Essa dignidade é atestada já nos poemas Joana d'Arc e Átila, de Espectros, em que vemos antecipada em embrião a grande estatura dos versos de Romanceiro da Inconfidência, livro em que, na mesma toada de seu trabalho de estreia, mas além em alcance, Cecília Meireles atinge, por meio da mesma tensão latente ensaiada aos 17 anos, o cerne do sujeito histórico e chega ao mito (que, como já dissemos, é algo a um só tempo maciço e impreciso).

Já o “lavor de joalheiro” está figurado com nitidez no soneto Ecce homo!, em que noticia a condenação do Cristo. Em cada estrofe, ela opõe uns aos outros os termos das rimas, confrontando a inteligência rasa dos opositores de Jesus à profundidade de seu pensamento; a postura predatória e irracional dos primeiros à atitude generosa, providencial do último. Esse jogo de contradições confere tensão dialética à estrutura do poema, o que imanta e absorve o leitor de poesia; convida-o a fruir e a entender e descobrir.

Espectros, pequeno livro de estreia da poeta Cecília Meireles é, além de centenário, premonitório: foram os primeiros vagidos de uma personalidade literária e intelectual feminina que vincou fundo a face do Brasil. A renovação que já anunciava em germe, vazada a princípio em molde parnasiano, tornou-se das mais consistentes e perenes da literatura de língua portuguesa.

A obra poética à qual deu início merece mais estudos e maior difusão. Quem sabe quando os estudos literários se livrarem de seu machismo congênito, Cecília e outras poetas frequentem mais estantes, salas de aula, simpósios, saraus, tardes, olhos, corações e mentes dos leitores de poesia.

Que este e outros 8 de Março sejam oportunidades de refletir e também reivindicar isso.

* Elder Vieira é escritor e membro da direção estadual do PCdoB-SP. No Ministério da Cultura, foi chefe de Gabinete das Secretarias de Programas e Projetos Culturais e de Articulação Institucional, além de coordenador-executivo do Plano Nacional de Cultura da Secretaria de Políticas Culturais