Encontro Trump/Putin e os porta-vozes da Guerra

O patético é que a mídia nativa reproduz estas análises sem qualquer filtro e acaba adotando um tom indignado contra Trump por “não defender os interesses dos EUA”, ou por não dar crédito aos “serviços de inteligência americanos”.

Por Wevergton Brito Lima*

Putin e Trump - Foto: Kremlin

O encontro ocorrido nesta segunda-feira (16), na capital finlandesa, Helsinque, entre Trump e Putin, os dois principais dirigentes das duas maiores potências nucleares do planeta, EUA e Rússia, poderia ser analisado sob diversos ângulos: os conflitos geopolíticos e/ou militares em que, direta ou indiretamente, os dois países estão envolvidos, (Ucrânia, expansão da Otan, Síria, Oriente Médio, Crimeia, etc.), as contradições econômicas, as visões divergentes sobre o sistema de governança global (ONU, etc.).

Todos estes temas envolvem aspectos que ultrapassam os interesses das duas nações, e seus desdobramentos, em uma ou outra direção, pode afetar centenas de milhões de pessoas pelo mundo. Assim, seria a partir do que se tratou sobre estes assuntos que se pode fazer uma análise sobre avanços, congelamentos ou recuos nas relações entre estas duas potências, tendo em conta os interesses da paz mundial.

No entanto, na visão dos analistas da mídia hegemônica, nada disso tem qualquer importância. Até porque sobre todos estes temas eles têm uma visão inequívoca e sem nuances: a Rússia está errada e os EUA estão certos.

Portanto, não é de se espantar que a análise em coro da mídia hegemônica internacional se prenda a um aspecto absolutamente secundário: a suposta interferência da Rússia nas eleições presidenciais estadunidenses realizadas em 2016.

Esse não apenas é um assunto secundário, como, na verdade, totalmente irrelevante, tanto para a humanidade em geral quanto para o próprio EUA especificamente.

Vamos lá: em sendo verdadeira a tentativa de interferência no rumo da política interna estadunidense, o que fez a Rússia de diferente do que os próprios EUA fazem em todas as eleições ao redor do Globo?

Os EUA foram, há muito pouco tempo, pegos com a boca na botija espionando e colocando escutas até em telefones de fiéis aliados, como a chanceler alemã Ângela Merkel, que, se queixou amargurada em 2013: “espionagem entre amigos, isso não se faz“. O então primeiro-ministro belga, Elio Di Rupo, outro aliado vítima da espionagem estadunidense, exigiu que providências fossem tomadas: “Os fatos são os fatos. Não podemos aceitar, seja de quem for, uma espionagem sistemática. São necessárias medidas e não se pode imaginar isso a nível de um único país, são necessárias medidas europeias (…) para que cesse esta atitude“.

Passaram-se cinco anos desde então. Rupio não é mais primeiro-ministro belga, nenhuma medida foi tomada pela “Europa” e os EUA continuam espionando todo mundo como antes.

Ora, com quê objetivo os EUA espiona inclusive os aliados? A resposta é óbvia: para, com informações privilegiadas, fazer movimentos que interfiram na política interna destes países a favor dos interesses americanos.

O histórico de interferência norte-americana em eleições ao redor do mundo, fraudando e promovendo golpes, não é segredo para ninguém e até mesmo descontraidamente admitido por ex-chefes da CIA. Mas os “analistas”, a soldo da mídia hegemônica, tratam com histeria uma suposta interferência russa na eleição estadunidense como se isso nunca tivesse acontecido no mundo.

A “análise” que eles fazem da reunião entre Putin e Trump, poderia ser tirada de um release da CIA. Não passa de uma lista das opiniões de Washington, tidas como verdades incontestáveis, e uma defesa dos “serviços de informações”, eufemismo para o aparato repressor estatal estadunidense.

O patético é que a mídia nativa reproduz estas análises sem qualquer filtro e acaba adotando um tom indignado contra Trump por “não defender os interesses dos EUA”, ou por não dar crédito aos “serviços de inteligência americanos”.

Vejamos, apenas como exemplo, pois ele não escreveu nada muito diferente da esmagadora maioria dos “analistas” da mídia comercial, o texto escrito por Helio Gurovitz publicado no G1 (Portal da Globo) nesta terça-feira, intitulado O Papelão de Trump diante de Putin. O articulista começa condescendente com Trump, afinal ele “não reconheceu a soberania russa sobre a Crimeia, não isentou a Rússia de responsabilidade sobre os envenenamentos no Reino Unido, nem apoiou o regime de Bashar Assad“.

Observem que interessante, é muito importante, para o jornalista, que Trump não reconheça a soberania da Rússia sobre a Crimeia (região que faz parte da Rússia desde o século 18 – com um breve intervalo no século XX – e cuja população em peso expressou o desejo de fazer parte da Rússia), não isente a Rússia pela culpa do envenenamento de um espião e de sua filha (acusação que não tem o respaldo de provas e que é uma história sem pé nem cabeça que não temos aqui tempo para detalhar), nem defenda o legítimo governo sírio de Bashar Al-Assad que está derrotando os terroristas financiados e treinados por Washington. Por que será que ele acha tudo isso importante? Não vai adiantar o leitor procurar no texto em questão a resposta. O autor não perde tempo argumentando. Aliás, a resposta está implícita: se os EUA defendem que a Criméia não é da Rússia, que a Rússia envenenou espião em Londres e que Bashar Assad deve ser derrubado do poder na Síria, não há o que discutir, isso só pode ser verdade e verdade sagrada.

Daí o artigo começa o massacre contra o magnata, racista e reacionário Donald Trump, mas não por ele ser magnata, racista e reacionário, mas porque Trump “desmentiu as conclusões de todos os serviços de inteligência americanos” e entre a negativa de Putin e “as investigações da CIA, FBI, NSA”, Trump teria escolhido Putin, o que, para o “analista”, seria escolher a mentira.

Ou seja, fica mais uma vez implícito que, para Helio Gurovitz e seus similares o que a CIA, o FBI ou a NSA dizem é, de fato, verdade sagrada. São os mesmos que até hoje alimentam a esperança de achar no Iraque as armas de destruição em massa que estes mesmos serviços de inteligência dos EUA afirmavam que estava em posse de Sadam Hussein, patranha urdida para justificar uma guerra que destruiu um país e assassinou milhões em benefício do bolso de alguns.

Depois de expressar sua indignação por Trump não ter acreditado em seus serviços de inteligência, o articulista do G1 descreve, visivelmente satisfeito, a repercussão negativa nos EUA do desempenho de Trump diante de Putin, e cita o senador republicano John McCain, um veterano do Vietnã, ultraconservador, para quem, “nenhum presidente anterior se rebaixou de modo tão abjeto perante um tirano”.

Na verdade, o que incomodou John McCain não é o fato de ele considerar Putin (presidente eleito com o voto da maioria do povo Russo ao contrário do mandatário americano) um “tirano”, pois de fato ele não tem aversão alguma a tiranos como mostra sua relação íntima com a despótica família real da Arábia Saudita, que enche os cofres de suas entidades “beneficentes” com generosidade, o que incomodou MacCain e outros críticos dos resultados da reunião entre Putin e Trump (que de concreto teve pouca novidade), é outra coisa muito diversa.

MacCain e boa parte dos parlamentares republicanos e democratas são ligados umbilicalmente a uma das principais indústrias dos EUA: a indústria armamentista, a indústria da guerra.

O que eles gostariam é que Trump e Putin tivessem levado o cenário de instabilidade que o mundo já vive para um limite máximo de tensão. Mas Trump, que usa a imprevisibilidade de seus gestos como uma estratégia própria, não cumpriu, na ocasião, o roteiro previsto.

É preciso entender que a indústria da guerra é como qualquer outra: precisa vender seus produtos. Neste sentido, quanto mais tensão melhor. Mesmo que a guerra não estoure, as nações se armam, e podem ter certeza de que estamos falando em bilhões e bilhões de dólares que entram nos cofres de MacCain e afins.

Não duvidemos que parte deste mar de dinheiro serve para ajudar a manter o poder de oligarquias, inclusive midiáticas, em países explorados, o que explica muito o “patriotismo” por uma pátria alheia de “analistas” a serviço da mídia hegemônica.

O poder deste lobby armamentista é poderoso e Trump nesta quarta-feira declara que foi “mal interpretado” e que na verdade apoia e aceita as conclusões dos seus infalíveis serviços de informação e que a Rússia é afinal responsável pela tentativa de interferir nas eleições americanas. Os escribas da mídia comercial já se preparam para de forma hábil lidar com o recuo sem se contradizer, mas não escondem o sorriso se satisfação: a turma da guerra venceu mais uma.