Luiz Manfredini: Tristeza na primavera de Pequim

No livro que produzi para a Fundação Maurício Grabois em 2012 – “Vidas, veredas: paixão”, com o subtítulo “Memórias da saga comunista” – dediquei algumas páginas ao que ficou conhecido como a Chacina da Lapa. Há exatos 40 anos, a repressão da ditadura militar então vigente no País, invadiu a casa onde acabara de se realizar uma reunião do Comitê Central do PCdoB.

Por Luiz Manfredini* 

Luiz Manfredini: Tristeza na primavera de Pequim - Reprodução

O resultado da grande operação policial-militar foi o assassinato dos dirigentes Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drumond e a prisão de cinco outros, estes submetidos a tenebrosas torturas. O texto a seguir narra essa história trágica.

Na manhã de final de primavera em Pequim, 17 de dezembro de 1976, um dirigente do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCCh) compareceu inesperadamente à casa em que estavam hospedados três importantes visitantes estrangeiros: João Amazonas, Dynéas Aguiar e Renato Rabelo, dirigentes do Partido Comunista do Brasil. A fisionomia grave com que encarou os camaradas brasileiros superava a habitual formalidade chinesa. Foi direto ao ponto: a agência noticiosa chinesa divulgara havia pouco que a polícia invadira a casa em que se reunia o Comitê Central do PCdoB, num bairro de São Paulo. Havia mortos e presos.
João Amazonas, o único entre os três a conhecer o endereço, o confirmou: Rua Pio XI, 767, no bairro da Lapa, onde habitualmente se reunia a direção nacional do Partido. O número total de baixas e as respectivas identificações ainda estavam confusos no despacho da agência chinesa.
O dirigente chinês, respeitoso e compungido, apresentou aos brasileiros as condolências e a solidariedade do PCCh, retirando-se em seguida. Na sala ficaram os brasileiros com sua dor.

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Aldo Arantes descia as escadarias da estação Paraíso do metrô quando um grupo de policiais que pareceu surgir do nada lhe caiu em cima, aos berros e trambolhões, sem lhe dar chance de reação. Passava das dez da noite do dia 15 de dezembro de 1976. Encapuzado, lançado no chão de um carro, ali mesmo começou a apanhar.

Menos de uma hora antes Aldo e Haroldo Lima haviam desembarcado nas proximidades do Ibirapuera de um carro do qual a marca, o modelo e a cor não conheciam, porque vendados. Recém terminara a reunião do Comitê Central do PCdoB e ambos compunham uma das duplas que, a intervalos, deixariam a casa onde ocorrera o encontro ultrassecreto. Antes haviam saído João Batista Drummond e Wladimir Pomar. Os próximos, Jover Telles e José Novaes, sairiam na madrugada seguinte, conduzidos pelo motorista Joaquim Lima e por Elza Monnerat, integrante do Comitê Central e participante da Guerrilha do Araguaia, encarregada do transporte dos participantes da reunião. Na casa restaria o histórico dirigente Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, um dos comandantes do Araguaia, e Maria Trindade, que lá morava e ajudava na infraestrutura.

João Batista Drummond e Wladimir Pomar foram presos na região da Avenida Nove de Julho, logo após desembarcarem do mesmo carro em que, horas depois, viajariam Aldo Arantes e Haroldo Lima. Este foi seguido até em casa e preso na manhã do dia seguinte. A dupla Jover Telles e José Novaes saiu ilesa, mas não Elza Monnerat e o motorista Joaquim Celso de Lima, presos após deixá-los em algum ponto da cidade. Na manhã seguinte, 16, a casa da Rua Pio XI foi atacada por uma força descomunal de policiais e militares fortemente armados. Cobriram-na de balas, matando Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Maria Trindade, militante que ali morava, foi presa.

As reuniões do Comitê Central, realizadas a cada seis meses, eram cercadas de medidas extremas de segurança. Contavam sempre com apenas metade dos seus membros, que se revezavam, de modo que ao menos uma parte da direção restasse a salvo de eventual ataque repressivo. Os membros, apanhados sempre à noite em locais da cidade combinados com pouca antecedência, seguiam vendados até o local da reunião e assim permaneciam até que o carro estacionasse numa garagem fechada, com entrada direta para a casa. Os procedimentos durante a reunião eram rigorosos. Nenhum vizinho deveria suspeitar do encontro, razão pela qual a regra do silêncio era absoluta na sala com portas e janelas cerradas. Nenhuma voz elevada, nenhum debate veemente, nenhum cumprimento efusivo, nenhum movimento que resultasse em ruídos. Para todos os efeitos ali morava um casal de idosos – João Amazonas e Elza Monnerat – e os empregados Joaquim e Maria. Tudo bastante convencional.

Mas nada disso resistiu ao que de pior poderia acontecer: a existência de um traidor entre os dirigentes ali reunidos. Jover Telles, baseado no Rio de Janeiro, havia sido preso três meses antes, sem que ninguém soubesse, e negociado com a polícia. Em troca do bom tratamento, da liberdade e de algumas vantagens, entregaria a reunião do Comitê Central do Partido. Foi o que fez. Levou a repressão ao ponto onde seria apanhado para a reunião. E a polícia armou seu plano de ataque. Durante os dias em que esteve reunido com seus camaradas, Jover portou-se como se nada de anormal houvesse ocorrido.

O único dos participantes da reunião que escapou, fora o próprio Jover, foi José Novaes, que teve a sorte de sair da casa em dupla com o traidor, poupado pela polícia. Jover desapareceu antes mesmo que raiasse o dia 16 de dezembro. Somente tempos depois investigações revelaram sua traição.
As torturas começaram já após as prisões, no Doi-Codi da tristemente famosa Rua Tutóia. João Batista Drummond não resistiu e morreu horas depois. Aldo, Haroldo, Elza Monnerat e Wladimir Pomar (filho de Pedro Pomar) foram transferidos para o Rio, na madrugada doa dia 17 de dezembro, onde as sevícias, sob os mais perversos requintes, se prolongaram por dias a fio no macabro quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Notório centro de torturas da ditadura, lá Aldo Arantes ouviu o que jamais abandonaria sua memória e que lhe vem frequentemente como pesadelo: certa madrugada foi acordado pelos gritos lancinantes de um homem adulto que, massacrado pelo suplício, suplicava pela mãe, não por Deus, não pelo pai, mas pela mãe. Na madrugada de terror, aquele clamor agônico: “Mãe! Mãe! Mãe”.

De volta a São Paulo, continuaram a ser torturados no DOPS e no Doi-Codi, até serem transferidos para o presídio do Hipódromo e, depois, para o do Barro Branco.

Haroldo e Aldo foram condenados a cinco anos de prisão. À pena de Haroldo somaram-se mais cinco anos de um processo anterior. Mas foram libertados bem antes, no segundo semestre de 1979, com a anistia.

* Jornalista a escritor paranaense, autor, entre outros livros, dos romances "As moças de Minas", "Memória e Neblina" e "Retrato no entardecer de agosto".