Prestes e Fidel: dois gigantes latino-americanos 

"Minha esperança percorre o mundo
De todos os cantos vozes me respondem
A miséria perde terreno
Avanço e em toda parte nossas mãos nuas formam o leito
Sementes hoje
Colheitas amanhã"**

Por Ana Maria Prestes Rabelo*

Fidel e Prestes - Foto: Arquivo

Prestes e Fidel são dois seres humanos gigantes, nascidos nas terras Americanas. Ao visitar a biografia e os exemplos de vida de cada um, é interessante notar como ambos tinham consciência da grandeza um do outro. Há uma sutil delicadeza na relação deles ao longo de várias décadas do século XX, daquele tipo de relação não óbvia, não vulgar, mas intensa e complexa. Os desafios que ambos enfrentaram e o peso de suas ações e pensamentos explicam um pouco os seus gestos recíprocos, mas há também um respeito mútuo fortíssimo, que só é possível presenciar entre titãs que se reconhecem.

Há pelo menos dois momentos de suas biografias que demonstram a força do elo que se forjou entre os dois. No início dos anos 60, quando a revolução cubana ainda era um espanto e uma incógnita, mas já enfrentava a fúria norte-americana, Prestes, então dirigente central do PCB, apesar de suas próprias desconfianças e ressalvas pessoais, coordenou uma defesa inconteste do novo governo cubano e seu líder Fidel Castro, não somente no Brasil, mas no exterior. Ao final dos anos 70, quando Prestes já estava em franco processo de ruptura com o PCB e recebeu a frieza e a indiferença de vários líderes socialistas mundiais que anteriormente o idolatravam, Fidel manteve intacta a relação e a admiração que lhe dedicava.

Luiz Carlos Prestes nasceu em 3 de janeiro de 1898 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no Brasil. Fidel Castro Ruiz nasceu em 13 de agosto de 1926 em Birán, Mayarí, em Cuba. Cada um se destacou politicamente em seu próprio país, tendo como pano de fundo a América Latina e o movimento comunista internacional. Inevitavelmente se encontraram, seja pela coincidência dos ideais socialistas, pela admiração recíproca ou por desígnio da história latino-americana que faria dos dois personagens ícones da luta pela libertação do povo latino-americano.

A diferença de idade entre os dois era de quase trinta anos, portanto o jovem Fidel foi quem soube primeiro da existência de um "Cavaleiro da Esperança" no Brasil, pois quando ele se tornou jovem, Prestes já era um mito. Em entrevista concedida à Ignácio Ramonet, Castro, respondendo a uma pergunta sobre o processo de ascensão de Chávez, enquanto militar, na Venezuela, toma Prestes como exemplo de insurreição militar na América Latina. Nas palavras dele, "não se pode esquecer, por exemplo, entre os próprios brasileiros, que Luiz Carlos Prestes foi um oficial que realizou uma marcha em 1924-1926 quase como a que realizou Mao Tse Tung em 1934-1935. Jorge Amado escreveu sobre a marcha de Luiz Carlos Prestes, uma bela história, o "Cavaleiro da Esperança", entre suas magnificas novelas – eu tive a oportunidade de lê-las todas -, e aquela marcha foi algo impressionante, durou mais de dois anos e meio, recorrendo imensos territórios de seu país sem sofrer jamais uma derrota. Quer dizer que houve proezas que saíram dos militares".***

Por outro lado, Prestes passaria a tomar conhecimento de Fidel logo na sequência da Revolução Cubana, na virada do ano de 1959 para 1960. Prestes já tinha seus 60 anos e estava em um momento bastante importante da sua condução como Secretário Geral do PCB em um dos raros períodos de legalidade do partido. Neste mesmo ano de 1960 ele viajou à China, à União Soviética e à Alemanha Democrática (RDA), sem deixar de centrar sua atenção às novidades que ocorriam na América Latina e à tentativa de entender melhor quem eram as lideranças cubanas cujo surgimento poderia dar novo significado à luta pelo comunismo na América Latina. Nas palavras de Prestes, em texto do periódico Novos Rumos de 1961:

"Acompanhamos com entusiasmo os êxitos da Revolução Cubana e festejamos as grandes conquistas do povo cubano. Temos afinal na América Latina um governo digno, um governo que defende com altivez a soberania nacional e que fala de igual pra igual com os brutamontes de Washington. Que diferença entre a palavra clara e digna de Fidel Castro na Assembléia Geral da ONU – lídima expressão dos anseios de independência e liberdade dos povos da América Latina – e o coaxar repelente dos delegados dos demais (…)"****

Nas três décadas que se seguiriam, até 1990 quando Prestes faleceu, emergiria uma relação fortíssima entre Prestes e Fidel, que se perpetuariam como dois grandes líderes comunistas da América Latina. Não foi uma relação fácil, pois imbricada em toda a trama inerente ao movimento comunista internacional e às divergências táticas de seus líderes. Permeada por uma guerra fria entre o campo socialista e o campo comandado pelo país vizinho, os Estados Unidos da América. Uma relação sujeita a todo tipo de desinformação, sabotagem e confusão, características de um cenário em que o acesso às informações era bastante distinto do que se tem hoje após a revolução tecnológica dos anos 80 e 90.

O elo que se formou entre os dois não foi automático e nem pacífico, a princípio. Quando Fidel surgiu na cena latino-americana, Prestes já era uma liderança comunista consolidada mundialmente e uma grande referência para a América Latina. Fidel veio para contrariar sua tese no interior do PCB de que não era o momento de buscar conquistar o poder pela via armada, à luz da "Declaração de março de 1958". Che e Fidel eram o exemplo vivo que os adversários de Prestes e defensores da luta armada precisavam para mostrar que este era um caminho viável. Na época, Prestes apostava em um crescente processo de democratização da vida política brasileira. Prestes também via com ressalvas a política externa de Fidel, achando que esta era isolacionista, antileninista. Todas essas ressalvas de Prestes eram amparadas na sua referência a Blas Roca, então Secretário Geral do Partido Comunista Cubano, com função homóloga a de Prestes no Brasil. Nos anos que se seguiriam, especialmente após o golpe de 64 e com Fidel já estabelecido na direção de Cuba, seria a vez deste criticar Prestes pela forma com a qual os comunistas enfrentavam o regime militar ditatorial. Todas essas divergências, no entanto, não afetaram a constituição de uma relação de enorme respeito e confiança. Em muitos momentos eles se aproximaram no interior do movimento comunista internacional, por exemplo fazendo críticas comuns aos eurocomunistas. E aos poucos o jovem líder revolucionário cubano e o já não tão jovem líder comunista brasileiro iam se aproximando em estatura e respeito mútuo. Passariam a ser duas das maiores referências políticas da América Latina do Século XX.

*Ana Maria Prestes Rabelo é doutora em Ciência Política e membro do Comitê Central do PCdoB.

**Trecho do poema Luiz Carlos Prestes de Paul Éluard, mas que serve para ilustrar igualmente a pujança de outro líder latino-americano: Fidel Castro

***"No hay que olvidar, por ejemplo, que entre los propios brasileños, Luis Carlos Prestes fue un oficial que realizó una marcha en 1924-1926 casi como la que hizo Mao Tsé Tung en 1934-1935. Jorge Amado escribió de la marcha aquella de Luis Carlos Prestes, una bella historia, El caballero de la esperanza, entre sus magníficas novelas -yo tuve oportunidad de leerlas todas-, y la marcha aquella fue algo impresionante, duró más de dos años y medio, recorriendo inmensos territorios de su país sin sufrir jamás una derrota. Es decir, que hubo proezas que salieron de los militares." (Fidel em entrevista concedida a Ignacio Ramonet, publicada em 14 de abril de 2006 e disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=29916)

****Novos Rumos (20 a 26 de janeiro de 1961, pg. 3 – http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=122831&pagfis=1214&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader)