Boito:A crise e a ofensiva da direita para retomar a agenda neoliberal

De acordo com o cientista político Armando Boito, a crise política brasileira se origina da ofensiva do campo neoliberal ortodoxo contra os governos neodesenvolvimentistas do PT. A investida da direita, que serve ao capital internacional, busca reimplantar o programa que vigorou na década de 90. Tal processo político, avalia ele, reflete um conflito distributivo – de apropriação da riqueza -, que opõe classes e frações de classes no Brasil.

Armando Boito

Professor titular de Ciência Política da Unicamp, Boito participou nesta quinta (18) do debate “A natureza da crise política brasileira”, promovido pela Fundação Maurício Grabois, em São Paulo. Segundo ele, o atual momento político deriva do agravamento de contradições. A principal delas se daria entre a Frente Política Neodesenvolvimentista, que sustentou os governos petistas de 2003 a 2014, e a Frente Neoliberal Ortodoxa, que dirigiu o país e teve hegemonia na década de 90 e atualmente organiza a oposição burguesa às gestões do PT.

“A crise se originou fundamentalmente dessa ofensiva restauradora, que quer reimplantar o programa neoliberal”, disse. Para ele, tal investida, contudo, foi agravada pelo fato de também dentro do própria Frente Neodesenvolvimentista existirem contradições.

“Em 2011 e 2012, quem estava na ofensiva era o governo Dilma, com medidas neodesenvolvimentistas, uma seguida da outra. Mas, a partir de 2013, o campo neoliberal ortodoxo tomou a iniciativa, sitiou o Ministério da Fazenda e sua nova matriz de política econômica. Retomou a agitação do programa neoliberal. E, quando reiniciou essa ofensiva, encontrou a Frente Neodesenvolvimentista já esgarçada, com sua unidade comprometida”, analisa.

A Frente Neodesenvolvimentista

O que Boito chama de neodesenvolvimentismo é a política aplicada pelo PT, que procurou estimular o crescimento econômico por intermédio da intervenção do Estado na Economia, a partir de ações de financiamento, ampliação do investimento público e protecionismo à produção local, por exemplo.

“Mas o prefixo ‘neo’ não é apenas porque veio depois do desenvolvimentismo. É que esse novo desenvolvimentismo, que foi configurado nas políticas econômica, externa e social dos governos do PT, diferentemente do velho desenvolvimentismo, é uma política de estímulo ao desenvolvimento por intermédio do Estado e limitada pelo modelo capitalista neoliberal que, ao meu modo de ver, não foi superado na economia e no capitalismo brasileiro. Esse modelo impõe limites à política de crescimento econômico. E, muitas vezes, quando os governos do PT esbarravam nesses limites, tendiam a recuar”, detalha.

Segundo o cientista político, esta frente neodesenvolvimentista é dirigida por uma burguesia interna. “Preservou-se aqui uma fração de classe com base de acumulação própria, com interesses distintos dos interesses do capital imperialista. Não é uma burguesia anti-imperialista, mas que disputa com o capital estrangeiro posições na economia brasileira. E inclusive na economia da América Latina. Essa é a principal base social dessa política”, diz.

O professor afirma que, no Brasil, essa burguesia interna não precisou criar um partido político. Ela “assediou” o PT, conseguindo que o partido passasse a aplicar uma política que atendesse a seus interesses.

Desta forma, apesar de o PT não ter rompido a ordem que vigorava anteriormente, adotou medidas que moderaram os efeitos negativos do modelo capitalista neoliberal sobre o crescimento, explica Boito.

“Não superaram a política de abertura comercial, mas criaram uma política de produção de conteúdo local, instauraram nichos de protecionismos. Mantiveram a política de juro elevado, que inibe o investimento produtivo, mas procuraram moderar os efeitos negativos dessa política. Decuplicaram o orçamento do BNDES, passaram a emprestar a juros negativos para grandes empresas nacionais. Não renegociaram a dívida pública, então grande parte do orçamento é esterilizado, o que inibe a capacidade de investimento do estado. Mas eles procuraram retomar os investimentos públicos, de qualquer forma, e retomaram”, enumera.

Para ele, o simples atendimento aos interesses dessa burguesia interna – que resulta em uma política de crescimento econômico – já tem um impacto popular, que permite a esses governos ter certa base de apoio. “FHC entregou o governo em 2003 com 13,5% de desemprego. No fim do primeiro mandato de Dilma, o desemprego era 4, 6%. A diferença é bárbara. Mas, além disso, esses governos adotaram medidas de política social que contemplaram interesses de assalariados urbanos, de uma classe média e operária, dos camponeses e de um grande contingente de trabalhadores da massa marginal”, acrescenta.

Com tanta heterogeneidade, era mesmo de se esperar que houvesse contradições dentro desta frente. Mas, de acordo com Boito, nos momentos críticos, como na crise do mensalão, por exemplo, essas forças muito distintas se juntavam.

“Em 2005, os movimentos populares defenderam o mandato de Lula e as grandes entidades empresariais se fizeram fotografar na porta do Planalto com o presidente, o apoiando. A imprensa da Fiesp publicou matéria atrás de matéria criticando a oposição que estava conturbando o ambiente econômico do país. Em 2010, Dilma recebeu o apoio ativo e explícito do setor sucroalcooleiro, das centrais sindicais, do MST. Passada a eleição, os conflitos afloram. Mas, se nos momentos em que está em risco o governo eles se juntam, temos aí uma frente”, conclui.

A Frente Neoliberal Ortodoxa

De acordo com Boito, do outro lado, está a Frente Neoliberal Ortodoxa, pautada pela política econômica, social e externa que vigorou durante os governos do PSDB. Na agenda dos tucanos estava a desregulamentação financeira, abertura comercial, privatização e uma política externa de submissão aos Estados Unidos, cita.

“Sua base social era a fração da burguesia acoplada, subordinada ao capital internacional. E que quer restaurar o programa neoliberal ortodoxo da década de 90. Todas as medidas que moderam os efeitos negativos do modelo capitalista neoliberal sobre o crescimento são criticadas por essa frente”, aponta.

O professor afirma que a ligação da oposição aos governos do PT com o capital estrangeiro fica clara na análise da plataforma neoliberal. Em um momento em que projetos de tucanos tramitam no Congresso, propondo mudar as regras do Pré-Sal e abrir o capital e a gestão das estatais brasileiras, Boito questiona: “A quem interessa as medidas propostas pelo Serra e as críticas feitas por FHC? Quem vai ganhar com o fim da política de conteúdo local? Quem vai ganhar com o fim do financiamento do BNDES para empresas nacionais? Tudo que eles propõem favorece o capital estrangeiro e o setor da burguesia subordinado a esse capital”.

Segundo o professor da Unicamp, a fração da burguesia, que é a força dirigente do campo neoliberal, tem ainda como aliada a alta classe média, que não possui os mesmos interesses da fração da burguesia. “O problema dessa alta classe média não é a política econômica, mas a política social dos governos do PT”, diagnostica.

“Ela entende que paga os gastos do Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida, e entende que essa política social promove, de maneira indevida, a população pobre. O alvo é a política social, tanto pelo aspecto econômico, quanto ideológico, simbólico, porque entendem que o pobre está comparecendo a lugares que, imaginam eles, deveriam ser frequentados apenas pelos ricos. E foi a alta classe média que se mobilizou em todas essas grandes manifestações [contrárias ao governo Dilma]. Era só coxinha, sim”, analisa.

A crise

Boito afirma então que, devido a essa ofensiva restauradora da direta, setores populares que integravam a base social da frente neodesenvolvimentista, foram neutralizados e até ganhos pela agitação política promovida pela grande burguesia internacional e pela alta classe média.

“Você tem aí uma uma gradação. O setor mais ativo é a alta classe média. Mas eles estão conseguindo expandir. Isso é a situação de crise. Porque significa que aquela linha, que sempre dividiu o campo neoliberal do neodesenvolvimentista, se deslocou, de modo a ampliar a base social do campo neoliberal ortodoxo”, reconhece.

Conforme suas avaliação, mesmo forças e organizações que continuam no campo neodesenvolvimentista, “tiveram seu ânimo de luta abatido, devido à ofensiva da direita, que é multifacetada – nos planos partidário, parlamentar, midiático e nas instituições do Estado, como a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário”. Para Boito, a presidenta Dilma Rousseff respondeu a essa investida da direita com um recuo, o que criou uma situação difícil para o movimento popular.

No bojo dessa crise da política neodesenvolvimentista, o cientista político ressalta que há também uma instabilidade da democracia. “Não digo que haja uma crise da democracia, porque não há uma força social nacionalmente representativa propondo uma ditadura. O que estão propondo é um golpe branco. Mas há uma situação de instabilidade, que mostra como essa grande burguesia integrada ao capital internacional e a alta classe média prezam muito pouco pelos valores democráticos”, observa.

Boito ressalta que essas forças querem, a todo custo, anular o resultado das urnas. “Somos obrigados a refletir sobre esse desprezo pela democracia. Há uma velha discussão na esquerda brasileira sobre a fragilidade da democracia nos países dependentes e a gente está de novo assistindo a isso”, adverte.

O Contexto

Durante o debate da Fundação Maurício Grabois, o secretário nacional de Movimentos Sociais do PCdoB, André Tokarski, e o estudante de História e assessor da Vice-Presidência do PCdoB, Mateus Fiorentini, destacaram o contexto em que a crise política brasileira está inserida.

Tokarski situou o momento no marco de uma ofensiva conservadora na América Latina, que atinge países como a Argentina e a Venezuela. Já Fiorentini, citou a crise estrutural do capitalismo, mencionando que o Brasil passa a internalizar os impactos das turbulências da economia internacional.

Por Joana Rozowykwiat, do Portal Vermelho