“Primavera” de sangue na Líbia

A Líbia de Muamar Kadafi não era uma democracia à maneira ocidental. Entretanto, o regime instalado em 1969 com a queda da monarquia dirigida por Idris I e a inauguração de uma república árabe autodeclarada popular e socialista, tinha inegáveis aspectos progressistas. De início, expulsou tropas estrangeiras estacionadas no país e nacionalizou o petróleo, bancos e empresas estrangeiras, ganhando a inimizade perene do imperialismo.

Depois, foi um regime controverso mas que incorporou conquistas democráticas e modernizantes fundamentais. Promoveu o afastamento entre Estado e religião, declarando-se um estado laico, e criou as condições que tornaram o povo líbio um dos mais prósperos do continente africano. Em 2010, a renda per capita era de US$ 15 mil, o país tinha um IDH elevado de 0,755, sendo o de número 53 no ranking mundial (o Brasil, com 0,699, estava em 73º lugar), a esperança de vida ao nascer era de 74 anos (no Brasil era de 72,4), a mortalidade infantil era de 18 para cada mil bebês nascidos vivos (no Brasil é de 20), e a taxa de alfabetização 84,2%, uma das mais altas no Oriente Médio.

A agressão imperialista, instrumentalizada pelos ataques da Otan em apoio às forças rebeldes desde março deste ano, empurrou a Líbia de volta à barbárie. Fortaleceu o radicalismo religioso que agora, depois do assassinato de Muamar Kadafi, proclama o fim do estado laico, impõe a xaria, a lei islâmica, e mancha de sangue aquilo que foi anunciado, ao mundo, como uma “primavera” dos povos.

O que ocorreu na Líbia foi um retorno ao passado mais tenebroso. As tropas a serviço do imperialismo destruíram a república iniciada em 1969 e assassinaram o presidente. E não se deram sequer ao disfarce de um julgamento fraudulento como o realizado no Iraque e que levou à execução de Sadam Hussein em 2006.

Quando as milícias monitoradas pela Otan entraram na cidade líbia de Sirte, no dia 20, elas sumariamente lincharam Muamar Kadafi e seu filho Mutassim. Nesta segunda-feira (24), divulgou-se a informação sobre o massacre de antigos partidários de Kadafi – foram encontrados 53 corpos no hotel Mahaari, em Sirte, com indicação de terem sido executados depois de detidos. Alguns estavam com as mãos atadas atrás das costas quando foram executados.

A sequência de horror na Líbia desmascara a hipocrisia do imperialismo. O presidente Barack Obama e a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, comemoraram o assassinato do líder líbio e apoiaram o início da “democracia” de sangue que garante os interesses geopolíticos dos EUA na região e promete a volta do petróleo líbio às empresas que haviam sido expulsas, há quatro décadas, por Kadafi. O mesmo fizeram os governantes das potências europeias agressoras.

Outra autoridade do imperialismo, o secretário de Defesa britânico, Philip Hammond, pareceu mais realista em suas declarações e defendeu a apuração daquele crime pelas autoridades que usurparam o poder na Líbia, para – disse ele – “reconstruir e limpar a sua reputação".

Como se isso fosse possível. O apoio dado a milícias rebeldes que, sem a intervenção estrangeira, não teriam a menor chance de sucesso, já havia sido um crime do imperialismo. Crime que foi ficando cada vez mais evidente na medida em que se dava a conhecer o caráter atrasado, bárbaro, dos defensores líbios da “democracia” pró-EUA. E que revelou toda sua crueza com os linchamentos ocorridos em Sirte, transformando a “primavera” líbia numa primavera de sangue.