Passagens aéreas e democracia

No dia 22 de abril o jornalista Heraldo Pereira, do Jornal da Globo, praticamente pregou o fechamento do Congresso ao dizer ser impossível viver com este que está aí.


 


Não pode haver dúvida de que atentados contra o patrimônio público, cometidos por autoridades dos três poderes, precisam ser investigados e punidos. O chamado ''escândalo das passagens aéreas'', que coloca o Congresso Nacional na berlinda da grande imprensa, é um desses casos, e traz indícios de tais crimes, como o da denunciada máfia das passagens e do tráfico de bilhetes aéreos.


 


Mas é preciso separar o ilícito do exercício legítimo da atividade parlamentar que, num país continental como o nosso, exige o deslocamento dos mandatários. E mesmo para o exterior, onde for exigida sua presença representando o Brasil ou o Congresso Nacional, em eventos que fazem parte da integração entre os povos e seus representantes.


 


A questão mereceria apenas o rodapé das páginas políticas ou policiais se não envolvesse uma questão maior. Nos últimos meses, a correta denúncia de ilícitos cometidas por alguns políticos transformou-se numa campanha aberta contra a política e o Congresso, resvalando perigosamente para a pregação  anti-democrática que sugere, nas entrelinhas, a atitude ditatorial de que a vida seria melhor sem haver um Congresso funcionando.


 


A democracia brasileira é recente, e precisa evoluir bstante para se aprofundar e consolidar. E o caminho para isso não é o enfraquecimento do Congresso Nacional, mas seu fortalecimento. Muitos dos problemas existentes estão enraizados em práticas originárias da ditadura militar encerrada em 1985, e que ainda perduram. E decorrem não do excesso de democracia. Ao contrário: maior transparência da atividade política, fortalecimento da representatividade e atuação dos parlamentares, ênfase em projetos políticos coletivos e não individuais – tudo isso depende de uma reforma política que amplie a participação e o envolvimento da população com a política. Tudo o que os setores mais conservadores não querem e que entravam a realização de uma reforma política democrática.


 


Estes setores tentaram, com a enxurrada de CPIs dos últimos tempos, recuperar o domínio quase unilateral que tiveram até a eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência da República, em 2002. Não conseguiram. Agora, tudo indica que mudaram o foco, colocando a política no alvo, sem recuar nem mesmo no enxovalhamento de seus próprios representantes. Nenhum político presta, é o que parecem dizer, atuando numa cultura política sensível a este tipo de argumento. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o cientista político José Álvaro Moisés (que saiu do PT para ser secretário geral do Ministério da Cultura no governo de Fernando Henrique Cardoso) revela que embora 70% dos brasileiros aprovem o sistema democrático, há uma fatia grande (de 30%) que aceitariam a excrescência de uma democracia sem parlamento: 70% não confiam no Congresso, e 82% não encaram os partidos com bons olhos.


 


Para avaliar a preocupação que estes números provocam basta lembrar o papel ativo que os grandes jornais exerceram na preparação do ambiente favorável ao golpe militar de 1964, quando campanhas hipocritamente moralizantes, semelhantes à atual, proliferaram  em suas páginas.


 


A vigilância contra qualquer tipo de irregularidade, mesmo as menores, deve ser ampla e dura. Mas ela não justifica – não pode justificar – generalizações irresponsáveis e abusivas que, mirando nas instituições, podem ferir gravemente o processo democrático.