O julgamento dos torturadores

Perto de completar três décadas de existência, e mais de dois decênios após o fim da ditadura militar, a controvérsia em torno da Lei de Anistia de 1979 – que já era grande naquela época – pode crescer. O motivo: da mesma forma como há trinta anos trás, hoje questiona-se a ''anistia recíproca'' proclamada pelos generais que governavam o Brasil e que, sob o rótulo de ''crimes conexos'' (como diz a lei) acoberta torturadores e assassínos de presos políticos e deixa-os livres des processos judiciais e de punição.



Mas a exigência de punição dos agentes públicos que cometeram aqueles crimes tenebrosos nunca foi posta de lado nestes anos todos. A polêmica esquentou nos últimos meses, principalmente depois do início de uma ação judicial, cujo principal alvo é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para responsabilizar os acusados pelo sequestro, tortura e morte de presos políticos, numa ação iniciada por duas famílias, a Silva Telles (cujos membros, inclusive crianças pequenas, foram sequestrados e torturados no DOI Codi de São Paulo em 1972) e a do jornalista Luiz Eduardo Merlino (assassinado sob tortura em 1971).



A ação pede o reconhecimento da responsbilidade daqueles torturadores. E, a partir da tese de que a lei de anistia não acoberta torturadores, eles também podem ser condenados a indenizar a União pelos valores pagos às famílias das vítimas. Há também ações apurando os sequestros, em 1980, do ítalo-argentino Lorenzo I. Viñas (em Uruguaiana, RS) e do casal argentino Horácio D. Campiglia e Monica S. P. Binstock (no Rio de Janeiro), no contexto da Operação Condor, que articulava a repressão política dos países do Cone Sul.



A ação também questiona diretamente a ''anistia recíproca' da ditadura militar. Nesse sentido, no dia 26, os procuradores Marlon A. Weichert e Eugênia G. Fávero, de São Paulo, protocolaram representações nas Procuradorias da República do Rio e de São Paulo, e também em Uruguaiana (RS) pedindo a abertura de ação judicial contra agentes públicos acusados de assassinato e seqüestro durante a ditadura. São ações judiciais que podem desembocar em um pronunciamento do STF sobre a legalidade – questionada pelos procuradores – da cobertura daqueles crimes pela Lei de Anistia.



Outro elemento que pode fermentar a controvérsia é o anúncio, feito pelo coronel Ustra, de que, em sua defesa, vai arrolar como testemunhas autoridades da República (como o senador Romeu Tuma, que foi delegado do DOPS paulista sob a ditadura) e generais (como o comandante do Exército, Enzo Peri). Seu argumento é o de que, hoje, eles ''são os substitutos legais dos chefes, que, na época do meu comando do DOI/II Ex, deram-me as ordens cumpridas por mim, rigorosamente''. Isto é, Ustra usa o velho argumento, alegado por criminosos nazistas no Tribunal de Nuremberg, em 1945-1946, de que apenas cumpriam ordens…


 


O Brasil está atrasado nesta questão. Torturadores e responsáveis pela violência política nas ditaduras da Argentina, Uruguai e mesmo no Chile de Pinochet já tiveram que comparecer aos tribunais, para responder por crimes contra a humanidade. Entre eles generais, alguns que exerceram a presidência da República durante aquelas ditaduras.



Este atraso, tudo indica, pode começar a ser superado. A procuradora Eugênia G. Fávero considera fundamental que o Estado investigue, processe e julgue os crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura, e argumenta que a Lei de Anistia não protege os responsáveis por sequestro, tortura e assassinato políticos. São crimes que, disse, “não se apagam com o tempo, são imprescritíveis e há esse dever de justiça e de memória”, destaca. Ela tem razão.