O impasse entre o lobo e o cordeiro na OMC

As negociações da Rodada de Doha sobre o comércio mundial foram suspensas por tempo indeterminado nesta segunda-feira (24), depois de um fim de semana de febris movimentos diplomáticos para pelo menos salvar as aparências. Que não avançassem, não é novidade. Mas é a primeira vez, em seis anos de Doha e 11 de OMC (Organização Mundial do Comércio) que o fiasco aparece assim desnudo.



 
“É a mais próxima que podemos ter do desastre”, disse o chanceler brasileiro, Celso Amorim. Uma retomada demorará “algo entre meses e anos”, previu o ministro de Comércio e Indústria indiano, Kamal Nath. Brasil e Índia, cacifados nas negociações por pertencerem ao G20, representam o Terceiro Mundo no G6, onde transcorrem as negociações (e que inclui ainda EUA, União Européia, Japão e Austrália).



 
O pomo da discórdia que gerou o fracasso foi, ainda, o protecionismo agrícola que os países ricos se recusam a abandonar. E a delegação dos Estados Unidos foi que mostrou mais “intransigência” — um qualificativo usado, entre outros, por Christine Lagarde, ministra do Comércio da França.



 
A intolerância americana exacerbou-se com a aproximação das eleições parlamentares de 7 de  novembro. De olho no voto dos “farmers”, republicanos e democratas pressionam a Casa Branca. Esta, docemente constrangida, recrudesce a linha-dura. Só aceita cortar os subsídios agrícolas de houver o que chama “reciprocidade”, ou seja, se os países pobres aceitarem a “desproteção” de seus mercados de bens industriais, serviços e propriedade intelectual.



 
Grandes jornais da mídia brasileira, como O Estado De S. Paulo, analisaram esse acontecimento como uma grande derrota da política externa do governo Lula. Ocultam substancialmente que a determinação das potências imperialistas, sobretudo, dos Estados Unidos da América de concentrar riquezas e privilégios através entre outros meios, de um comércio desigual, é causa de fundo do fracasso da Rodada Doha. O Brasil, demais países do G-20 e outros países em desenvolvimento, movimentaram-se tendo por eixo a luta pelo direito dos países ao desenvolvimento. O Fracasso não é decorrente da altivez da política do G-20, como subliminarmente querem insinuar. Sem a resistência, essa importante aliança dos países em desenvolvimento não teria se efetivado. Sem a resistência, sequer o debate teria sido travado.


 


Fundada com pompa e circunstância em 1º de janeiro de 1995, e hoje com 147 países-membros, a OMC é o principal produto multilateral da vitória americana na Guerra Fria e da ofensiva neoliberal da década passada. Não deixa de haver certa justiça poética no seu colapso. Mas no mundo do comércio não abre espaço para devaneios. O impasse de Doha lembra de perto o diálogo de La Fontaine entre o lobo e o cordeiro. E a fábula conta quem devorou a quem quando o diálogo acabou.



 
Com Doha engavetada, ou sepultada, os analistas temem o recrudescimento de um clima de guerra comercial mundial. A tendência é para o enrijecimento da política de blocos, onde se destacam o Nafta, norte-americano, e a União Européia. Os blocos dos ricos tendem a fatiar o tratamento dado aos países do Terceiro Mundo, por meio do mecanismo bilateral dos TLCs — Tratados de Livre Comércio, tristemente célebres na América Latina –, onde se premia os mais predispostos a negociar de cócoras. É um ambiente hostil para blocos de países em desenvolvimento, como o Mercosul, que depois do recente reforço venezuelano soma perto de um 14 avos do PIB do Nafta ou da UE.



 
Desde o início da OMC, o movimento de resistência aos seus desígnios neoliberais se desenvolve em duas vertentes.



 
Há a resistência dos trabalhadores e dos povos. Esta aponta a Organização como um fórum neocolonial do tipo do FMI e Banco Mundial, e tem mobilizado enormes protestos globais, com destaque para Seattle (EUA), em 1999, Gênova (Itália) em 2001 e Cancún (México) em 2003.


 



-E há a resistência dos países em desenvolvimento que não se conformam com a sina de globalizados da globalização. Esta se manifesta numa infinidade de escaramuças diplomáticas e tem como principal feito a constituição do G20, em 2003, com decisiva participação do Brasil.



 
As duas vertentes parecem às vezes correr em leitos paralelos, ou mesmo divergentes, o que se explica apenas em parte pela diversidade das forças sociais e políticas que as impulsionam. O fato é que a experiência objetiva de mais de uma década mostrou que ambas são em essência confluentes, apóiam-se uma na outra e precisam uma da outra para avançar.



 
A tomada de consciência desse denominador comum objetivo é uma necessidade que ganha hoje contornos de urgência. O agora escancarado fiasco de Doha aponta para uma exacerbação dos conflitos do comércio mundial. Mas é nas horas de conflito e perigo que se aprende a distinguir quem é quem.