O Equador e o passo à esquerda latino-americano

Quatro domingos após o 29 de outubro brasileiro entre Lula e Alckmin, em 26 de novembro, a América Latina assistirá a outro segundo turno presidencial polarizado entre esquerda e direita, no Equador. No último fim de semana, os equatorianos selecionaram, entre os inéditos 13 postulantes à presidência, dois que simbolizam estas alternativas opostas para seu país: Alvaro Noboa e Rafael Correa. O confronto faz parte da onda vermelha que há anos, subvertendo o mapa mundi e o legado do século 20, vai fazendo da América Latina a ponta-esquerda da geopolítica mundial.


 


Pode-se discutir a qualificação cromática da onda: será vermelha? É, sim, de um vermelho latino-americano, feito de sangue e barro. Não o vermelho puro-sangue que só existe nos manuais e devaneios, mas aquele que as classes sociais e as forças políticas avançadas do continente souberam e puderam tingir. Cheio de nuances, contradições, indefinições, incongruências, paradoxos, não consolidado e com destino ainda incerto, é com tudo isso um fenômeno histórico. Na América Latina, só tem paralelo nas Guerras de Independência de dois séculos atrás.


 


No Equador como no Brasil, os campos da ''segunda volta'' estão bem definidos. Noboa, um magnata proprietário de um império bananeiro, derrotado nas duas últimas eleições presidenciais, é quase uma caricatura de direitista: sua plataforma inclui o rompimento de relações diplomáticas com Cuba e a Venezuela. Correa define-se como um esquerdista não marxista mas cristão; defende a retirada da base norte-americana de Manta, no litoral do Pacífico, a nacionalização do petróleo e a convocação de uma Constituinte.


 


É difícil prognosticar o resultado, num país que passou por sete presidentes em dez anos. Mas a guinada à esquerda no continente não significa que a vitória esteja escrita nas estrelas. Tem significado sim, em todos os casos, acúmulo de forças progressistas.


 


Na Colômbia, o presidente Alvaro Uribe, porta-estandarte da direita continental, foi reeleito em maio, no primeiro turno. E, no entanto, a esquerda colombiana teve o seu melhor desempenho eleitoral de todos os tempos. No México, em julho, o direitista Vicente Fox fez seu sucessor, Felipe Calderón, do Opus Dei (boa tarde, candidato Geraldo Alckmin), num processo em que seu desafiante López Obrador denunciou uma fraude monumental. Mas, mesmo tomando-se o duvidoso resultado oficial que deu a Calderón uma vantagem de 0,6% dos votos, foi igualmente um resultado inédito. No Peru a candidata da direita, Lourdes Flores, sequer passou para o segundo turno, que decidiu ao conduzir seu eleitorado no sentido do ''mal menor'' entre dois candidatos de matiz antineoliberal.


 


Assim, o sentido do deslocamento latino-americano importa mais que cada resultado imediato. Visto no seu todo, é um passo à esquerda de dimensões continentais. Os analistas da direita, que se baseiam nos exemplos acima para enaltecer uma suposta onda ou contra-onda conservadora, estão a enganar no máximo a si próprios.


 


Há uma certa ironia no predomínio das formas eleitorais nesta guinada — embora não seja um predomínio absoluto. Que o diga a Bolívia, a festejar hoje (17) o terceiro aniversário da derrubada do presidente pró-americano Sanches de Lozada, ''el Gringo'', por uma quase-insurreição de operários, camponeses e povo pobre em geral, que preparou a eleição de Evo Morales.


 


Este fator, somado aos matizes que turvam o rubro da onda vermelha latino-americana, perturbam às vezes o julgamento do conteúdo do processo. Certos lutadores e pensadores de esquerda, não raro com as melhores intenções, ao examinar árvore por árvore perdem de vista a floresta. A floresta, vasta como este continente que é a Terra do Jaguar, é o avanço progressista, antineoliberal, patriótico e antiimperialista, democratizante, libertador. Quanto às árvores, sim, trataremos de cada uma, mas sem perder a perspectiva do conjunto.