O controverso Gilmar Mendes

A República é constituída por três poderes independentes – Executivo, Legislativo e Judiciário – que devem, exige a Constituição, funcionar harmonicamente. O fim do mandato do ministro Gilmar Mendes como presidente do Supremo Tribunal Federal e sua substituição pelo ministro Antônio Cezar Peluso anuncia a recomposição daquela harmonia que, no mandato que se encerra (2008 e 2010) nem sempre caracterizou a relação entre os poderes.

Gilmar Mendes sai envolto em controvérsia. Seu mandato foi comemorado pela mídia conservadora e pela oposição demo-tucana, que lamentam sua saída. O movimento popular, entretanto, vê com alívio o fim de sua permanência à frente da mais alta corte de justiça do país.

A mídia faz um balanço favorável de seu mandato. Reduziu em 62%, em relação a 2007, o número de processos em tramitação, que ficou em menos de 100 mil; a distribuição de Recursos Extraordinários para serem analisados e julgados caiu para apenas 8.348 em 2009 (era de 49.708 em 2007); foi instituído o Mutirão Carcerário, que resultou na concessão de mais de 20 mil liberdades e 35 mil benefícios com base na Lei de Execução Penal. Durante seu mandato, o STF enfrentou temas polêmicos, como as pesquisas com células-tronco embrionárias; a demarcação da Terra Indígena da Reserva Raposa Serra do Sol; o pedido de extradição do italiano Cesare Battisti.

Mas este balanço também tem alguns pontos obscuros. O de maior repercussão foi a libertação do ex-banqueiro Daniel Dantas, preso pela Polícia Federal.

A controvérsia se acentua quando se trata dos movimentos sociais. Gilmar Mendes rompeu com a esperada neutralidade de um magistrado e foi um dos agentes mais notórios da criminalização dos movimentos sociais. Acusou os trabalhadores rurais sem terra de receber dinheiro do governo federal para promover ocupações e ações violentas, e pediu severa investigação dessa acusação, chamando o MST de “movimento de bandidos”. Atacou os sindicatos e as centrais sindicais investindo contra suas fontes de financiamento. Estendeu a mão aos barões da imprensa protagonizando o fim da Lei de Imprensa e a queda do diploma de jornalista. Acusou o governo do presidente Lula – numa visível afronta à harmonia entre os poderes e à independência entre eles – de dar às entidades que lutam pela reforma agrária dinheiro que, disse, seria desviado para “práticas ilegais”. Chegou mesmo, no auge destes ataques ao Executivo, a acusar o governo de mandar gravar os telefonemas do presidente do STF, acusação que nunca foi comprovada.

Numa tentativa de manter o movimento social contra a parede, no ocaso de seu mandato, uma das últimas medidas de Gilmar Mendes – no dia 19 – foi constituir um grupo de trabalho para "avaliar" e prevenir conflitos agrários e, entre outras coisas – justificou o ex-presidente do STF – assegurar o direito de propriedade. E, pode-se concluir, criar obstáculos à luta pela reforma agrária.

Com Gilmar Mendes, a presidência do STF foi vista como uma espécie de trincheira da oposição neoliberal, com grande exposição na vitrine constituída pela mídia dos patrões.

Na presidência do ministro Peluso, que assumiu dia 24 e vai dirigir o órgão até 2012, espera-se que este quadro possa ser alterado. Como ele próprio afirmou em seu discurso de posse, o presidente do STF terá uma atuação mais técnico-jurídica do que política. Ele anunciou que pretende repensar e reconstruir o Judiciário. Segundo sua visão, numa sociedade com contradições, como a brasileira, a justiça não pode adotar soluções "que atendam a todas as expectativas".

Espera-se que, no processo de mudanças que o Brasil vive desde 2003, tenham fim muitos privilégios elitistas, que vestidos com a roupagem de "direitos adquiridos" e proclamando a busca da conciliação e da concórdia, ancoram-se na via jurídica para garantir sua perpetuidade. Neste processo, o que se espera da justiça é que ela também funcione no sentido de promover mudanças.