Modernidade e medievalismo

O papa se foi. Esqueçamos por um momento a camisinha, o aborto, a castidade, a abstinência, o divórcio. Examinemos a visita e o discurso do santo padre de um ponto de vista mais abrangente – a relação com a modernidade.
Bento XVI tem sido duro com o que chama ''patologias'' da modernidade, o secularismo, o relativismo, o culto da razão. Sob esta ótica, atacou tanto o capitalismo como o marxismo. Em contraste, enalteceu os ''valores cristãos que jamais serão cancelados''. Retomou, em sua visita, a idéia de um escrito seu de 1982, segundo o qual  ''o problema'' da América Latina ''não é se tornar moderna, mas ultrapassar a modernidade''. Sobre a Igreja, proclamou que “permanecerá intacta até o fim dos tempos”.



A América Latina e o Brasil têm uma relação de certo modo contraditória com a modernidade. Pesa sobre nós o jugo de estruturas arcaicas, herdadas da longa noite da escravidão, de uma industrialização retardatária e periférica. Ao mesmo tempo, somos o ''Novo Mundo'': uma sociedade nascida das Navegações Oceânicas, parte inseparável da aventura moderna do último meio milênio. Neste sentido, poucos lugares do mundo são tâo desimpedidamente modernos.



Esta tem sido a era da ascenção da burguesia e da criação de seus coveiros, a classe dos trabalhadores assalariados modernos. Dinâmica, mutante, conflituosa, opõe-se à petrificação e ao dogma como nenhuma outra na trajetória da raça humana. Uma de suas descrições clássicas, no Manifesto Comunista de Marx e Engels, retrata-a assim:




''Uma revolução continua na produção, uma incessante comoção de todo o sistema social, uma agitação e uma insegurança constantes distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações sociais estancadas, enferrujadas, com o seu cortejo de concepções e de idéias antigas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes de se terem podido ossificar. Tudo o que tinha solidez e permanência esfuma-se; tudo o que era sagrado é profano, e os homens, finalmente, vêem-se forçados a encarar as suas condições de existência e as suas relações recíprocas com olhos sem ilusões.''



Ora, a Igreja, do alto de seus dois milênios, tem um problema com a modernidade. Resistiu à Reforma Protestante, à formação dos Estados nacionais, aos avanços do racionalismo e das ciências, à teoria heliocêntrica e à da evolução, às revoluções burguesas do passado e mais ainda às proletárias do presente. Resistiu pois tudo isso pôs fim à sua Idade de Ouro e predomínio na Europa medieval. E resistiu porque, como diz a música de Raul Seixas, uma metamorfose ambulante é o pior dos mundos para quem tem aquela velha opinião formada sobre tudo.



Em 1962, o Concílio do Vaticano fez o movimento inédito do aggiornamento – atualização –, que pode ser visto como uma abertura para a modernidade. Porém João Paulo II e mais ainda Bento XVI voltaram a trancar essa janela.
Curiosamente, a mesma oposição da Igreja, sob outro viés, aparece na escola de pensamento pós-modernista. Cada qual a seu modo, prés e pós compartilham a ojeriza à época das metamorfoses.



Já nós, do Novo Mundo, somos criaturas desse processo. A mudança que outros podem enxergar como o mal, o vício, a degradação da ordem estabelecida, é o nosso elemento.



Tem sido sempre uma mudança conflituosa, já que a modernidade é um território co-habitado por classes sociais com interesses e projetos antagônicos. O mundo de amanhã nascerá deste confronto de gigantes, de suas incontáveis peripécias de desfechos sempre incertos.



Sem dúvida não será o mesmo mundo de ontem. Não há caminho de volta para esta era das mudanças que tornou mais humana e mais fértil a humanidade.