Iraque: uma eleição manchada pela ocupação estrangeira

Um país ocupado pode ter eleições livres e legítimas? Não pode. Mesmo assim, no domingo (dia 7) cerca de 19 milhões de iraquianos foram às urnas (62% do eleitorado) para, sob o tacão da ocupação estrangeira, escolher os 325 deputados que formarão o novo governo do país.

Eles sinalizaram a vontade nacional de criar as condições para pôr um ponto final na ocupação, numa eleição que mostrou a existência de três dimensões importantes na política iraquiana, às vésperas do sétimo aniversário da agressão comandada pelos EUA.

A primeira delas é o indisfarçável cansaço da população com a guerra – população que, aliás, é protagonista da resistência heróica e tenaz que transformou a ocupação no atoleiro político e militar das tropas estrangeiras. “Espero que o novo governo cumpra as promessas feitas pelos candidatos. Queremos segurança e reconstrução”, disse um eleitor, revelando esse cansaço.
Isso não significa que a bandeira da resistência tenha sido baixada; a eleição foi marcada por dezenas de ataques a bombas e mísseis, alcançando inclusive a fortificada Zona Verde de Bagdá, bairro onde se concentram as autoridades da ocupação. O saldo foram 38 mortos e 110 feridos.

O outro aspecto é a forte divisão na sociedade iraquiana, como os resultados eleitorais mostram. Tudo indica que o primeiro ministro Nouri al-Maliki, cuja Aliança para o Estado de Direito venceu em nove províncias xiitas, terá o maior número de votos. Ele enfrenta outros postulantes ao cargo. Um deles é Iyad Allawi, que dirigiu o primeiro governo iraquiano depois da invasão de 2003 (nomeado pelos norte-americanos) e lidera a Iraqiya, um bloco que une todas as correntes religiosas e etnias iraquianas; há também o clérigo xiita Adel Abdel Mahdi, apoiado pelo Conselho Superior Islâmico do Iraque (CSII); outro é Baqer Jaber Solagh, também do CSII; há também nomes como Ahmed Chalabi, colaborador dos EUA na invasão de 2003 e conspirador contra Saddam Hussein; finalmente, Jawad Bolani, que espera ser o candidato do compromisso nesta eleição.

Tudo isso sem contar a minoria curda, entre a qual começa a despontar a disputa entre a União Patriótica do Curdistão (que tradicionalmente domina a politica local) e um novo partido, o Goran (Partido Democrático do Curdistão).

O resultado dessa dispersão será que nenhuma das forças terá representação parlamentar suficiente para formar sozinha o governo, como admite um conselheiro de al-Maliki segundo o qual “vai ser impossível formar um governo sem o apoio dos outros movimentos”. A direção política iraquiana precisará fazer um enorme esforço de composição para acertar diferenças étnicas e religiosas históricas em torno de um programa que cumpra “as promessas feitas pelos candidatos”, como quer o eleitor, e garantir a estabilidade e a retomada da normalidade da vida no país.

Este é o terceiro desafio, cuja solução não depende apenas do governo de Bagdá, mas de outro, situado há milhares quilômetros de distância. Os norte-americanos têm insistido na tese de que a retirada de suas tropas depende da retomada da normalidade, e que a eleição faz parte fundamental disso.

Essa imposição joga uma sombra de ilegitimidade sobre a eleição e mesmo sobre qualquer governo que se constitua nestas condições. Ao contrário do que pensa o governo de Washington, a precondição para a normalidade e a legitimidade institucional é a retirada imediata de todas as tropas de ocupação e a volta para casa de cada um dos quase 100 mil soldados norte-americanos. Neste particular, os sinais emitidos por Barack Obama são desoladores ao jogar no lixo a esperança de uma retirada breve e acenar com a perspectiva de manutenção do acordo feito entre o governo Bush e Bagdá em dezembro de 2008, que marcou a volta dos soldados para o final de 2011.