Enchentes: o descaso público que constrói o cenário do desastre

A reação do prefeito paulistano, o quase ex-demo Gilberto Kassab, ante as enchentes que todo início de ano transtornam a vida na cidade e destroem vidas e patrimônios, é acaciana e beira o cinismo. Ela pode ser resumida em duas palavras óbvias: chuva e água. Quem provoca a enchente são as águas da chuva, diz candidamente o prefeito, inocentando a administração municipal por estes desastres rotineiros. Este ano a frase usual do prefeito, proferida no dia 5, para justificar a enchente do dia anterior foi: "O que aconteceu ontem foi chuva, foi água".

São Paulo é apenas um exemplo neste desfile de horrores que, todo mês de janeiro, desdobra-se pelo Brasil afora, expondo o descaso, o desleixo, a improvisação, que marcam administrações municipais e estaduais entre cujas prioridades não estão o cuidado com a infraestrutura, a qualidade de vida principalmente da população mais pobre, nas quais faltam planos urbanísticos adequados e sobram a conivência e a cumplicidade com a especulação imobiliária e com a ocupação desordenada do solo, de encostas de morros, várzeas de rios e áreas de risco.

O noticiário pinga sangue, como mostra a contagem dos mortos que todo ano alimenta na mídia manchetes escandalosas, inúteis e inconsequentes. Só em Minas Gerais, este ano, já são mais de 66 municípios em situação calamitosa. Junto com outras cidades atingidas por enchentes, em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, este número ultrapassa uma centena. A estatística de mortos é assombrosa e imprecisa. Só na cidade fluminense de Teresópolis foram 32 vítimas, número que pode crescer na medida em que cheguem mais informações.

A chuva é um fenômeno natural e, desde o primeiro registro de uma enchente em Recife (PE), em 1632, sabe-se que janeiro é um mês de muita água. Em São Paulo não é diferente, e os dados coletados regularmente desde 1961 (há meio século!) mostram que todo início do ano é marcado por elevado volume de chuvas. O descaso administrativo que dá ao fenômeno natural a dimensão de uma catástrofe rotineira.

As explicações usuais – excesso de chuva – são, além de cínicas, completamente inúteis. As chuvas são um dado da realidade que não é levado em conta por governantes cuja ênfase são as camadas mais altas da sociedade, a propaganda de sua própria imagem, a escandalosa perpetuação de um modelo urbano predatório e falido, baseado no uso intensivo do automóvel e na impermeabilização do solo em residências, áreas de estacionamento, asfaltamento compulsivo de ruas e avenidas, canalização de rios e córregos e intervenções urbanas semelhantes.

São Paulo, a cidade mais rica do país, é um exemplo notável. O estado é administrado pelo PSDB desde 1995. E a cidade de São Paulo teve, desde 1993, administrações de direita, com o curto interregno de Marta Suplicy, de 2001 a 2005. Teve Paulo Maluf, Celso Pitta, José Serra e Gilberto Kassab, que governa a cidade desde 2006. Foram mandatos sem compromissos com o povo, durante os quais proliferaram desmandos e irresponsabilidade administrativa. Por exemplo: entre 2006 e 2009 o prefeito Gilberto Kassab investiu apenas 217 milhões dos 570 milhões previstos para obras contra as enchentes, ao mesmo tempo em que o governo do Estado contingencia (isto é, corta) os recursos destinados ao mesmo fim. Só em 2009 o governo estadual de José Serra gastou mais que isso em publicidade: 287 milhões.

No ano passado, mesmo com o crescimento na arrecadação de impostos da ordem de 835 milhões, a prefeitura gastou com obras anti-enchentes menos do previsto: 430 milhões, contra os 504 milhões que haviam sido orçados.

Nem os criticados e, segundo muitos técnicos, pouco eficientes, piscinões para contenção das águas da chuva, foram entregues nas quantidades prometidas: José Serra havia prometido 134 mas só entregou 43.

Em consequência, São Paulo, como muitas cidades brasileiras, não tem plano de emergência contra inundações. Os técnicos acusam atraso e desatualização no mapeamento das áreas de risco, falta de ações preventivas, descaso com a ocupação de várzeas e com a impermeabilização do solo, e falta de monitoramento com as encostas dos morros. O professor Edílson Pissato, da Faculdade de Geociências da USP, especialista em geologia de engenharia, faz, no portal UOL, uma denúncia clara e grave: não há preparo para as chuvas de verão “por falta de interesse e de uma ação política para atuar e resolver”.

O quadro que ele descreve é o retrato de um desastre político e humano, e não natural. As enchentes vão continuar, diz em relação a São Paulo, porque a forma de ocupação da cidade não mudou, a impermeabilização do solo é crescente, e as várzeas são ocupadas com a construção de avenidas (como as marginais, por exemplo) dentro da área natural (a várzea) de inundação dos rios na cheia, levando as vias públicas praticamente para dentro do leito dos rios. Pissato vê um “um desleixo em relação à prevenção. Os problemas são deixados de lado quando a chuva não é tão forte e aparecem quando vêm os temporais. Mas a chuva forte sempre ocorre, cedo ou tarde”, diz.

O descaso que gera o desastre se traduz na falta de uma política pública para atender à necessidade de moradia das camadas mais pobres e impedir a ocupação de áreas de risco como várzeas e encostas. E revela, pode-se constatar, um conluio da administração pública com a especulação imobiliária que incentiva a ocupação irregular e constrói os cenários do desastre.