Crise, ''perigo'' e ''oportunidade''

A crise imobiliário-financeira nos Estados Unidos, que nas duas últimas semanas contaminou os mercados mundiais, pode ser uma chance para o Brasil: a hora de se livrar dos ''fundamentos'' neoliberais que perduram em sua política macroeconômica.



Na sexta-feira e na segunda (17 e 20), depois de pesadas intervenções no mercado por parte do Fed (o banco central dos Estados Unidos), as bolsas de Nova York e do mundo iniciaram uma recuperação. Mas sua permanência é duvidosa.



Perduram nos EUA a bolha imobiliária, ainda não lancetada, e o superendividamento americano em geral, assim como os trilhonários déficits gêmeos, fiscal e comercial. Economicamente, a potênca americana atual é o Grande Enfermo – apelido que se dava, cem anos atrás, ao hoje finado Império Turco-Otomano.



A questão é: como reagirá o Brasil no momento em que a economia do mundo cair em si? Em que a bolha americana  vier a furo? Em que se tornar inviável realimentar os déficits dos EUA via absorção da poupança do mundo (inclusive a maior parte dos US$ 160 bilhões das reservas de divisas brasileiras a duras penas acumuladas)?



Em um dia nervoso da semana passada, o ministro Guido Mantega comentou que, se a crise estivesse ocorrendo há alguns anos, o Banco Central brasileiro já teria elevado bruscamente as taxas de juros, ''o ministro da Fazenda ligaria para o FMI e diria: 'Precisamos de sua compreensão e condescendência, vamos fazer lição de casa, mas precisamos de um empréstimo'''.



É salutar que o chefe da equipe econômica satirize assim o passado recente. Mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Café com o Presidente desta segunda-feira, usou em sentido positivo a mesma expressão que seu ministro satirizara. ''Nós aprendemos a fazer a lição de casa'', disse Lula.



Ora, fazer ou não a ''lição de casa'' prescrita pela ortodoxia globalizada é um dilema que se renova e se reforça durante as fases de crise.



Ao contrário do que acredita o senso comum, crises não significam necessária e unicamente recessão, desemprego e empobrecimento. Os chineses escrevem a palavra ''crise'' (''kiki''), combinando dois ideogramas, o que significa ''perigo'' e o que quer dizer ''oportunidade''. E o pensador marxista Inácio Rangel (1914-1994) demonstrou que as crises mundiais do século passado (as duas Guerras Mundiais e a Grande Depressão dos anos 30) foram momentos preciosos para o Brasil impulsionar sua industrialização.



É hora portanto de reconsiderar os atuais postulados macroeconômicos de juros elevados e câmbio flutuando à revelia dos interesses brasileiros, superávits fiscais escorchantes em benefício dos agiotas da dívida pública e fronteiras abertas para o capital especulativo. Nas condições que se prenunciam, uma reorientação neste sentido pode ser a condição para garantir crescimento acelerado e desenvolver o elemento de oportunidade que a crise contém.